A filosofia política liberal e o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras

Um amigo me perguntou se eu votaria no candidato à Presidência que se identifica como “liberal” (Jair Bolsonaro). A lógica por trás de sua pergunta era a de que já que eu me identifico como um “liberal democrata” (de persuasão “social”), provavelmente votaria num candidato filiado a um partido com “social liberal” no nome e que diz defender uma política econômica “liberal”. Esse é um equívoco nominalista que gostaria de desfazer.

Liberalismo” é um termo complexo. Refere-se a diferentes conceitos, a depender dos contextos nos quais é utilizado. Há “liberalismos políticos” e “liberalismos econômicos” – a variedade teórica é tão grande que não se pode tratar desses como se fossem uma única forma de abordar a política ou a economia (exatamente como ocorre com conceitos como “socialismo” ou “marxismo”).

Politicamente, o liberalismo possui pelo menos duas faces:

A) Como tradição intelectual – enquanto filosofia moral e política –, o liberalismo representa um conjunto de ideias que têm se desenvolvido ao longo da modernidade. Encontra sua fundamentação inicial no pensamento de Locke e Montesquieu, mas se solidifica como uma filosofia específica apenas após a Revolução Francesa. Apresenta três princípios consensuais básicos, criticados por perspectivas mais à direita e/ou à esquerda do espectro político:

I. Ética individualista – isto é, o indivíduo como personagem central dos valores e direitos (por exemplo, a liberdade não é apenas um direito do ser humano, é um direito de cada indivíduo);

II. Respeito equitativo por todos os seres humanos, baseado na crença de que todos são igualmente capazes de se autogovernarem;

III. Liberdade de pensamento e expressão, baseada na confiança na autonomia irrestrita da razão (=capacidade racional do indivíduo) como única e suficiente fonte de verdade objetiva.

Esses princípios, obviamente, são criticados dentro da própria tradição liberal, mas têm servido de guia filosófico para o liberalismo enquanto filosofia moral e política.

B) Como ordenamento político-jurídico, o liberalismo têm se desenvolvido – para o bem ou para o mal – ao redor de três princípios gerais:

I. Liberdade equitativa para todos os cidadãos, o que inclui a liberdade de o indivíduo agir como escolher, desde que se sujeite às leis que protegem os direitos iguais dos outros;

II. A proteção da liberdade de pensamento e expressão desse pensamento;

III. A organização desses princípios num sistema jurídico que garanta a igualdade de cada cidadão perante a lei.

Perceberam que não incluí a noção de “democracia” nos princípios acima? E não o fiz porque a participação democrática do cidadão não esteve sempre presente na filosofia política liberal. É por isso que quando identifiquei meu ideário político o chamei de “liberal democrata” – para afirmar que a minha forma de liberalismo é democrática. Essa junção de “democracia” ao “liberalismo” é mais recente, tendo se desenvolvido apenas no século XX. Os antigos teóricos liberais temiam, muitas vezes, que a democracia irrestrita pudesse sabotar tanto os princípios filosóficos liberais quanto o ordenamento jurídico proposto por eles. [Essa preocupação fica mais clara se examinarem a chamada “psicologia das massas” e a “teoria das elites”.]

Há uma questão importante, entretanto, no que concerne aos princípios filosóficos que listei em [A] III – a razão como única e suficiente fonte de verdade objetiva. Filosoficamente, muitos liberais discordarão das implicações epistemológicas dessa afirmação – especialmente aqueles que, como eu, foram/são influenciados por uma perspectiva dita “pós-moderna”. Esses aceitam o princípio da liberdade de pensamento e expressão, mas podem rejeitar a epistemologia objetivista presente naquele princípio.

O que interessa aqui, entretanto, é refletir até que ponto o candidato do partido chamado “Social Liberal” se encaixaria nos princípios filosóficos que listei acima para o liberalismo [A]:

I. Até que ponto alguém que abertamente ataca indivíduos e/ou grupos sociais dos quais discorda – por exemplo, os identificados como LGBT+ ou como “esquerdistas” –, e cujo discurso cria todo um ambiente de ameaça e amedrontamento, exibe respeito pelo princípio de ética individualista (cada indivíduo tem valor e dignidade como ela/ele é ou está)?

II. Consequentemente, até que ponto esse mesmo candidato se ajusta ao princípio de que cada indivíduo, independentemente de quem seja, deva ser respeitado da mesma forma que os demais. Como exemplo: as(os) cidadã(o)s gays, feministas, comunistas, petistas, etc, não devem ser respeitados e honrados da mesma forma como os tradicionalistas, direitistas, cristãos, etc, o são?

III. Até que ponto alguém que apoia a aprovação de leis que restringem, por exemplo, a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão de professores, representaria um ideário político liberal?

Eu poderia tratar aqui a respeito de, por exemplo, “ética distributiva” para discutir a questão da Previdência Social ou do programa Bolsa Família. Entretanto, não existe um consenso sobre ela no liberalismo como um todo – existe esse consenso, entretanto, na tradição chamada de “liberalismo social” (que ao menos nomeadamente declara ser a tradição do partido do candidato, e é minha tradição política de origem). Por isso, não importa discuti-la aqui, até porque o candidato se apresenta como economicamente liberal – o que, em outras palavras, significa que ele seria um adepto daquilo que é comumente chamado de “neoliberalismo”: ou seja, uma ideologia político-econômica rígida que enfatiza o livre mercado, um estado pequeno e forte, a iniciativa privada e a responsabilidade individual.

Em outras palavras, enquanto adepto da filosofia política liberal, não posso encontrar razões para votar num candidato como Jair Bolsonaro. Vejo, neste Segundo Turno, uma proximidade muito maior com o candidato do PT – apesar das muitas discordâncias no que concerne ao seu partido e ao seu Plano de Governo original.

Respondendo àquele amigo, digo que meu ideário filosófico liberal democrata e minhas perspectivas religiosas me motivam, de todos os lados, a votar e torcer pela derrota dum candidato que, filosoficamente, representa o contrário duma utopia liberal. Mas, obviamente, isso não significa que espero que os meus leitores aceitem minha posição. Só espero, francamente, que se acreditam naqueles valores que representam a filosofia política liberal, possam refletir antes do voto, e se escolherem o candidato do PSL, exijam seu compromisso com o respeito daqueles valores.

+Gibson

Mais poderosa do que duas Cleópatras

Uma das trilhas do álbum “The Miseducation of Lauryn Hill“, de 1998, o primeiro álbum solo de Lauryn Hill. Pessoalmente, o considero um dos mais marcantes álbuns da história do hip hop. Todas as canções são poeticamente belas, mas “Everything Is Everything” faz um apelo político marcante para qualquer jovem – para quem entende as referências feitas na letra, é impossível não se emocionar/energizar.

Everything is Everything (Lauryn Hill, 1998)

Everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

Everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

I wrote these words for everyone who struggles in their youth
Who won’t accept deception, instead of what is truth
It seems we lose the game
Before we even start to play
Who made these rules? (Who made these rules?)
We’re so confused (We’re so confused)
Easily led astray
Let me tell ya that

Everything is everything
Everything is everything
After winter, must come spring
Everything is everything

I philosophy
Possibly speak tongues
Beat drum, Abyssinian, street Baptist
Rap this in fine linen, from the beginning
My practice extending across the atlas
I begat this
Flipping in the ghetto on a dirty mattress
You can’t match this rapper slash actress
More powerful than two Cleopatras
Bomb graffiti on the tomb of Nefertiti
MCs ain’t ready to take it to the Serengeti
My rhymes is heavy like the mind of sister Betty (Betty Shabazz)
L-Boogie spars with stars and constellations
Then came down for a little conversation
Adjacent to the king, fear no human being
Roll with cherubims to Nassau Coliseum
Now hear this mixture, where Hip Hop meets scripture
Develop a negative into a positive picture

Now everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

Sometimes it seems
We’ll touch that dream
But things come slow or not at all
And the ones on top, won’t make it stop
So convinced that they might fall
Let’s love ourselves and we can’t fail
To make a better situation
Tomorrow, our seeds will grow
All we need is dedication
Let me tell ya that

Everything is everything
Everything is everything
After winter, must come spring
Everything is everything

Everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

Uma tradução livre:

É O QUE É

É o que é
O que tiver de ser, será
Depois do temporal, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

É o que é
O que tiver de ser, será
Depois do temporal, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

Escrevi estas palavras para todos os que lutam na juventude
Que não aceitarão a mentira, em vez da verdade
Parece que perdemos o jogo
Antes mesmo de começarmos a jogar
Quem criou essas regras? (Quem criou essas regras?)
Estamos tão confusos (Estamos tão confusos)
Facilmente desencaminhados
Me deixe dizer que

É o que é
É o que é
Depois do temporal, vem a calmaria
É o que é

Eu filosofo
Possivelmente falo em línguas
Bato tambores como um membro da Igreja Batista Abyssinian
Teço este rap sobre bom linho, desde o começo
Minha prática se estendendo ao redor do mundo
O fiz
Pulando sobre um colchão sujo no gueto
Você não chega aos pés desta rapper/atriz
Mais poderosa do que duas Cleópatras
Excelente graffiti no túmulo de Nefertiti
Os Mcs não estão prontos para levá-lo ao Serengeti
Minhas rimas são pesadas como a mente da Irmã Betty (Betty Shabazz)
L-Boogie luta com estrelas e constelações
Então desceu para uma pequena conversa
Próxima ao rei, sem medo de nenhum ser humano
Seguindo com os querubins para o Nassau Coliseum
Agora ouça essa mistura, onde o hip hop se encontra com a escritura
Transforme um negativo numa foto positiva

Agora é o que é
O que tiver de ser, será
Depois da tormenta, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

Às vezes parece
Que alcançaremos nossos sonhos
Mas as coisas vêm devagar ou não chegam
E os que estão lá em cima não fazem nada
Tão convencidos de que cairão
Nos amemos e não falharemos
Em criar uma situação melhor
Amanhã, nossas sementes crescerão
Tudo o que precisamos é dedicação
Me deixe dizer que

É o que é
É o que é
Depois da tormenta, vem a calmaria
É o que é

É o que é
O que tiver de ser, será
Depois da tormenta, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

 

Algumas referências do texto

Abyssinian, street Baptist = Referência a Abyssinian Baptist Church, uma igreja batista afroamericana no Harlem, cidade de Nova York; importante centro de ativismo sociopolítico da comunidade afroamericana.

Cleopatra = Reinou sobre o Antigo Egito entre 51 e 30 a.C.

Nefertiti = Esposa do Faraó Amenhotep IV e considerada a mulher mais poderosa de sua época.

MCs
= Originalmente, é uma abreviação inglesa para “Mestre de Cerimônias”; na cultura do Hip Hop, geralmente se refere a um artista ou artistas do rap.

Serengeti = Uma região de planícies e pastagens da África que abrange a Tanzânia e o Quênia.

Sister Betty = Uma referência a Betty Shabbaz (1934-1997), ativista de direitos civis, e viúva de Malcolm X.

L-Boogie = Apelido de Lauryn Hill.

Nassau Coliseum = Um grande estádio e local de shows em Long Island, Nova York.

 

A jihad contra a jahiliyyah: Sayyid Qutb e Osama bin Laden na reinvenção do Islã Político

[Artigo apresentado no Encontro de Estudos Teológicos Avançados do IRWEC, em 17 de março de 2014.]

Gibson da Costa

RESUMO: Neste artigo, consideramos a contribuição de algumas ideias do pensamento de Sayyid Qutb para a formação do pensamento islamita contemporâneo, especialmente em sua forma mais radical, como externada pelos textos atribuídos a Osama bin Laden, quando líder da al-Qa’ida. Apontamos a obra de Qutb como fonte para uma reinvenção de tradicionais conceitos islâmicos, a saber, jahiliyyah e jihad; e como introdutória do conceito de vanguarda no Islã político, conceito este que motivara o envolvimento de Osama bin Laden com o Afeganistão, durante o período da ocupação soviética, e seu posterior levante contra o regime saudita e os Estados Unidos da América.

PALAVRAS-CHAVE: Islã Político. Jihadismo. Pensamento Islamita. Sayyid Qutb. Osama bin Laden.

 

1. Introdução

            A história do início do século XXI já parece estar marcada, apropriada ou inapropriadamente, pela combinação de nomes e conceitos como Osama bin Laden, al-Qa’ida, Islã, e fundamentalismo. A aparente frequência com que se tem feito referência à combinação de tais nomes e conceitos em noticiários, publicações jornalísticas e acadêmicas, filmes, seriados de televisão, e discursos políticos, pelo menos desde 1996, já é suficiente para indicar a importância do Islã político para a consciência cultural de nossa era. Neste artigo, aproveitando-nos dessa celebridade, intentamos discutir aspectos da história intelectual da forma mais radical desse conjunto de movimentos que se esforçam pela politização do Islã ou, antes, pela islamização da política, especificamente no que concerne ao jihadismo preconizado pela al-Qa’ida, liderada por Osama Bin Laden até sua execução, em 2 de maio de 2011.

            Julgamos ser indispensável, antes que prossigamos, esclarecer as escolhas semânticas que fizemos para discutir nosso tema ao longo deste texto. Como, em língua portuguesa, os termos Islamismo e Islã são sinônimos, fazendo referência à fé professada por muçulmanos e muçulmanas – que não partilham, necessariamente, da mesma compreensão teocrática e essencialista daqueles que se engajam na politização do Islã ou na islamização da política em sociedades do, equivocadamente, chamado “mundo islâmico” –, decidimos fazer uso duma expressão que evitasse a confusão entre a religião em si e a política supostamente inspirada por crenças religiosas, e, por isso, utilizamos aqui a expressão Islã político para nos referirmos à segunda (uso que, desde já, reconhecemos não estar livre de certas limitações conceituais). Para nos referirmos à fé professada por muçulmanos e muçulmanas, utilizamos o termo Islã.

            Frequentemente, trata-se o Islã como uma civilização plena, como um sistema social e político, e não apenas como uma religião. O Islã é visto como uma revelação que explica a totalidade do pensamento, das ações e do modus vivendi dos muçulmanos. O Islã, assim, constituiria a essência da identidade muçulmana, tornando possível a definição de como os muçulmanos pensariam ou agiriam. Infelizmente, essa compreensão não é abraçada apenas por ocidentais olhando para o equivocadamente chamado “mundo islâmico”. É uma espécie de simbiose ideológica da visão que ocidentais orientalistas e islamitas orientais têm do Islã. Aqui, rejeitamos essa visão essencialista do Islã, por considerarmos que a mesma não seja empiricamente sustentável, analiticamente útil ou normativamente defensável. Essa é a razão, também, pela qual consideramos o uso da expressão “mundo islâmico” como equivocado e inadequado, já que tal uso subentenderia uma visão monoliticamente essencialista do Islã e das sociedades onde esse se desenvolve – da mesma maneira como o seria a utilização da expressão “mundo cristão” como referência ao chamado Ocidente.

            Para que tenhamos uma definição mais clara daquilo que aqui chamamos de Islã político, faremos uso daquela descrição oferecida por Guilain Denoeux do mesmo como sendo

uma forma de instrumentalização do Islã por indivíduos, grupos e organizações que buscam objetivos políticos. Oferece respostas políticas aos desafios sociais de hoje, imaginando um futuro cujas bases repousam sobre conceitos reapropriados e reinventados, tomados da tradição islâmica.[1]

           

            Essa reinvenção conceitual da tradição islâmica – i.e., sua compreensão em termos duma noção romantizada duma era dourada mítica – constitui o cerne dessa instrumentalização do Islã. Essa reinvenção provê os instrumentos para a descontextualização histórica do Islã no discurso teórico dos líderes intelectuais do Islã político (que não deve ser compreendido como um movimento monolítico), em seu esforço de reavivamento islâmico de suas sociedades. Esse esforço de reavivamento, de acordo com Berger, é um fenômeno social tão vasto geograficamente, que atinge países desde o norte da África até o sudeste asiático[2]. Não identificamos aqui essa empreitada, entretanto, com o tão abusado termo “fundamentalismo” – abusado tanto por jornalistas quanto por autores acadêmicos não especializados em teologia ou pensamento islâmico –, que indica, em seu uso original no meio cristão protestante, um retorno a supostos “fundamentos” da fé por meio duma leitura literal e estática do texto sagrado.

            Transferir o sentido do termo “fundamentalismo” para fazer referência aos variados movimentos radicais do Islã político não corresponde ao que pode ser analiticamente observado, já que as concepções hermenêuticas e práticas exegéticas dos mesmos são abertamente multiformes, não professando um mesmo tipo de leitura do texto sagrado ou da tradição teológica do Islã como a requerida pelo fundamentalismo cristão[3]. Ademais, no que concerne a crenças religiosas ou conceituações teológicas, “fundamentalismo” não é sinônimo de violência nem, necessariamente, de teocracia. Assim, utilizar a recorrente nomeclatura/adjetivação “fundamentalismo”/“fundamentalista” seria, no mínimo, inapropriado; o que nos força a fazer outras escolhas semânticas. Escolhemos, assim, utilizar os termos Islã político, e o adjetivo correspondente islamita(s), para nos referirmos ao sentido dado aos movimentos políticos definidos por Denoeux; e jihadismo, e o adjetivo correspondente jihadista(s), para nos referirmos distintamente àquela expressão do Islã político que comumente recorre a uma compreensão específica do conceito muçulmano de jihad, especialmente associado à herança intelectual do pensador egípcio Sayyid Qutb.

2. A jahiliyyah de Sayyid Qutb

            A história intelectual das empreitadas islamitas – i.e., relacionadas ao Islã político –, especialmente das jihadistas, é complexa e emerge de muitas fontes, mas o nome mais influente para sua gênese contemporânea é o do intelectual egípcio Sayyid Qutb. De 1948 a 1950, Qutb permaneceu nos Estados Unidos – para onde foi enviado pelo Ministério da Educação egípcio para pesquisar métodos de educação –, onde completou um mestrado em educação, na Universidade do Norte do Colorado. Foi, supostamente, essa sua experiência nos Estados Unidos que convenceu-o sobre o estado de decadência espiritual e moral do “Ocidente”. No livro que escreveu sobre seu tempo nos Estados Unidos, A América Que Vi, Qutb expressa sua admiração pelas grandes conquistas econômicas e científicas norte-americanas, ao mesmo tempo em que demonstra sua surpresa de que tais conquistas tenham sido alcançadas por uma sociedade que continuava, em sua opinião, “abissalmente primitiva no mundo dos sentidos, sentimentos e comportamentos”[4].

            Após seu retorno ao Egito, em 1950, Qutb tornou-se membro da Irmandade Muçulmana, que, por sua vez, defendia uma visão similar à sua quanto à necessidade dum retorno ao Islã. Sayyid Qutb compartilhava a visão do fundador da Irmandade, Hassan al-Banna – que estudara na mesma universidade egípcia onde Qutb se graduara, tendo sido assassinado em 1949 –, de que a modernidade (leia-se: o capitalismo, o individualismo, a democracia, o secularismo, o ateísmo etc) fosse a maior ameaça ao Islã. Havia sido essa modernidade, trazida pelos imperialistas ocidentais, que trouxera o infortúnio aos muçulmanos. Os Estados Unidos, na visão de Qutb, seria a representação maior de tudo o que essa modernidade significava. Em sua visão, para que os muçulmanos fossem livres, deveriam rejeitar essa modernidade e seguir o caminho do Islã – que, para ele, seria a essência da identidade muçulmana.

            Qutb se destacou como uma voz para a causa islamita quando se tornou o editor do jornal semanário da Irmandade, logo após juntar-se à organização. Essa foi a época na qual ele começou a escrever aquele que posteriormente se tornou um dos mais populares comentários ao Corão até hoje, À sombra do Corão, dividido em 18 volumes, que só concluiria durante a década que permaneceu na prisão, entre 1954 e 1964 (ele fora detido, juntamente com outros membros da Irmandade, acusado de haver conspirado contra a vida de Gamal Nasser). A obra, entretanto, que o tornaria o mentor intelectual das expressões mais radicais do Islã político (i.e., os movimentos jihadistas) seria um manifesto chamado de Marcos à beira do caminho – mais comumente conhecido como Marcos, maneira pela qual nos referiremos ao mesmo aqui. Apesar de já circular clandestinamente há alguns anos, o livro foi formalmente publicado apenas em 1964, um pouco antes de ele deixar a prisão. Marcos consistia numa série de cartas escritas da cadeia para seus correligionários da Irmandade Muçulmana e em algumas partes extraídas de À sombra do Corão, baseadas numa argumentação revolucionária que, metaforicamente, estremeceu o Egito de sua época.

            A filosofia política desenvolvida em Marcos foi vista como uma ameaça à legitimidade do governo de Nasser e, por isso, Qutb foi novamente preso em agosto de 1965, e sentenciado à morte – tendo sido enforcado em 29 de agosto de 1966. Em Marcos, Qutb divulga uma nova compreensão do antigo conceito de jahiliyyah – o suposto estado de ignorância que existia na Arábia anterior ao advento do Islã – que se mostraria indispensável à argumentação dos pensadores e ativistas islamitas. Ele afirma:

O Islã não pode cumprir seu papel a não ser que tome uma forma concreta numa sociedade, ou melhor, numa nação. Pois o homem não dá ouvidos, especialmente nesta era, a teorias abstratas que não veja materializadas numa sociedade viva. A partir deste ponto de vista, podemos dizer que a comunidade muçulmana se extinguiu há muitos séculos, pois essa comunidade muçulmana não se refere ao nome duma terra onde o Islã resida, nem a um povo cujos ancestrais viveram sob o sistema islâmico no passado. É, antes, o nome dum grupo de pessoas cujos modos, ideias e conceitos, regras e regulamentos, valores e critérios derivem, todos, da fonte islâmica. A comunidade muçulmana com essas características desapareceu no momento em que o direito islâmico foi suspenso na terra.[5]

            Assim, em sua reinvenção conceitual da tradição islâmica, e discordando da interpretação majoritária entre os teólogos sunitas, Qutb declarou que mesmo as sociedades ditas muçulmanas estariam num estado de jahiliyyah, que ele definiu – diferentemente do conceito tradicional – como um estado contemporâneo de  “rebelião contra a soberania de Deus na terra” no qual o homem reivindica o “direito de criar valores, legislar regras de comportamento coletivo e escolher qualquer forma de vida, sem qualquer consideração pelo que foi prescrito por Deus”. Com “o resultado dessa rebelião contra a autoridade de Deus” sendo “a opressão de suas criaturas”. Para sobrepujar essa jahiliyyah, seria necessário, segundo Qutb, “iniciar o movimento de reavivamento islâmico em algum país muçulmano”, já que apenas um tal movimento alcançaria “o status de liderança mundial”[6]. E ele prossegue:

Como será possível começar a tarefa de reavivar o Islã? É necessário que haja uma vanguarda que se erga com essa determinação e continue a percorrer o caminho, marchando através do vasto oceano de jahiliyyah que domina todo o mundo. No decorrer de sua jornada, deve manter-se à distância dessa jahiliyyah tanto quanto possível e deve também manter alguma ligação com ela.[7]

            A (re)definição, aparentemente tão inocente aos olhos de leitores ocidentais não-muçulmanos, dada por Qutb à noção de jahiliyyah e sua ideia de uma vanguarda se responsabilizar pelo estabelecimento dum Estado islâmico, regido pelo direito islâmico, serviriam como uma motivação ao ativismo revolucionário de diferentes formas de movimentos islamitas e jihadistas que encontram nos Marcos sua direção teórica. Dentre tais movimentos, encontra-se aquele que originou a al-Qa’ida. A obra de Sayyid Qutb, supostamente, teve um grande impacto no pensamento de Osama bin Laden, por meio da influência das palestras públicas de Muhammad Qutb – irmão de Sayyid Qutb, considerado o principal intérprete do todo da obra de Sayyid após sua execução, uma espécie de guardião de sua herança[8] –, às quais Osama costumava assistir quando na universidade[9]. Nela, ele e seus companheiros encontraram as justificativas para uma empreitada de jihad ofensiva contra aqueles que julgavam ser os inimigos do Islã, e a base para sua participação na guerra do Afeganistão, entre 1979 e 1989.

3. Osama bin Laden e a vanguarda islamita

            O público anglófono começou a se inteirar acerca de Osama bin Laden a partir duma entrevista dada por ele ao jornalista Robert Fisk, no Sudão, e que foi publicada pelo jornal britânico The Independent, em 6 de dezembro de 1993. No quarto parágrafo de seu artigo, Fisk escreve:

Ele é um homem tímido. Mantendo um lar em Cartum e apenas um pequeno apartamento em sua cidade natal de Jidá; ele é casado – com quatro esposas – e muito cuidadoso com a imprensa. Sua entrevista com o Independent foi a primeira que já deu a um jornalista ocidental, e inicialmente se recusou a falar sobre o Afeganistão […]. Mas no fim das contas falou sobre uma guerra que ajudou os mujahedin afegãos a vencerem: “O que vivi em dois anos lá, não poderia ter vivido nem mesmo em cem anos em outro lugar”, disse ele.[10]

            O retrato pintado pelo autor, em 1993, parece referir-se a uma pessoa completamente diferente daquela que se passou a retratar nos meios de comunicação especialmente a partir de 2001. Bin Laden já era visto então como uma espécie de herói islamita e, para muitos muçulmanos que não tinham nenhuma simpatia nem pelo jihadismo nem pelo terrorismo, como um exemplo de bom muçulmano. Sua reputação como um homem corajoso, generoso, austero, digno e devoto acompanhavam sua fama ao redor do mundo. O milionário que abandonara tudo para cuidar das necessidades dos mujahidin e para lutar ao seu lado no Afeganistão. Esse era o mito sobre o homem visitado por Robert Fisk.

            A reportagem continua com uma descrição do suposto papel desempenhado por Osama bin Laden no que o autor chama de “movimento de resistência afegã” – uma referência aos variados grupos jihadistas que lutavam contra a presença soviética no país a partir de 1979[11] –, reforçando, mesmo que indiretamente, o mito que já se construíra em torno do islamita saudita. Mais adiante, no oitavo parágrafo do texto, o autor inclui a narrativa do próprio bin Laden sobre a guerra no Afeganistão:

Certa vez, estava a apenas 30 metros dos russos e eles tentavam capturar-me. Estava sob bombardeio, mas tinha tanta paz em meu coração que adormeci. […] Vi um projétil de morteiro de 120mm cair diante de mim, mas não explodiu. Outras quatro bombas foram atiradas dum avião russo sobre nosso quartel-general, mas não explodiram. Derrotamos a União Soviética. Os russos fugiram.[12]

            A estratégia retórica utilizada para construir uma versão da história útil a seus intentos torna-se clara neste pequeno trecho, e a mesma repete-se em oportunidades posteriores, especialmente em suas cartas e discursos. As duas últimas frases tornaram-se elementos frequentes na propaganda da al-Qa’ida. Tornaram-se, ademais, elementos deveras importantes no mito acerca dos mujahidin que lutaram no Afeganistão, e a mais importante evidência da força do movimento liderado por bin Laden – apesar de, ao que tudo indica, a importância dos mujahidin não-afegãos na derrota dos soviéticos não ter sido tão decisiva quanto afirmava bin Laden.

            O que torna representativa a “vitória” dos mujahidin afegãos – e, consequentemente, a participação dos mujahidin não-afegãos associados a Osama bin Laden – na guerra no Afeganistão, entre 1979 e 1989, é o sentido simbólico atribuído a essa “vitória” por islamitas no chamado “mundo islâmico”. Para muitos, aquela representava a primeira vitória militar para o Islã em vários séculos, e parecia sabotar o espírito derrotista que abatera a comunidade muçulmana ao longo do século XX. Os eventos no Afeganistão serviram como apoio aos argumentos de Sayyid Qutb de que uma vanguarda muçulmana deveria armar-se para derrotar os supostos inimigos do Islã e fundar um Estado islâmico regido pelo direito islâmico. E havia sido aqueles argumentos o que motivara ideologicamente muitos dos voluntários muçulmanos de todo o mundo a se juntarem aos mujahidin afegãos, mesmo que sua participação não tenha sido o que decidira a guerra contra as tropas soviéticas.

            A guerra no Afeganistão, de acordo com o historiador Robert D. Kaplan, deixou um saldo de mais de um milhão de mortos, e levou um terço da população afegã, cerca de 5 milhões de pessoas, ao exílio. Apesar de toda a brutalidade daquela guerra, sua divulgação nos meios de comunicação ocidentais, em comparação com outros conflitos de menores proporções, foi mínimo[13]. Provavelmente, como sugerem os relatos do jornalista Rob Schultheis (um dos poucos a cobrir a guerra como correspondente), a deficiência na cobertura jornalística do conflito poderia ser atribuída às dificuldades para sobreviver às condições que o ambiente impunha, com doenças, falta de alimentos e água, falta de hospedagens e meios de comunicação, entre tantos outros empecilhos[14]. Para o imaginário dos islamitas que se juntaram aos afegãos, vencer aquela guerra equivaleria a derrotar a jahiliyyah, ajudando assim a estabelecer um Estado islâmico que serviria de base para a libertação das terras do Islã.

            Anos mais tarde, esse mesmo discurso de jihad em nome da libertação das terras do Islã seria mais uma vez vociferado por Osama bin Laden e seus associados. Em um pronunciamento radical, sua primeira declaração pública de jihad aos Estados Unidos, em 1996, lê-se:

[…] Não é segredo para nenhum de vós, meus irmãos, que o povo do Islã tem sofrido agressão, iniquidade e injustiça a ele impostas pela aliança de sionistas e cruzados, e seus colaboradores; a ponto de o sangue muçulmano ter tornado-se o mais barato, e sua riqueza ter tornado-se pilhagem nas mãos dos inimigos. Seu sangue foi derramado na Palestina e no Iraque. As horríveis imagens do massacre em Qana, no Líbano, ainda estão vívidas em nossa memória. Massacres ocorreram no Tajiquistão, em Burma, na Caxemira, em Assam, nas Filipinas, em Fatani, em Ogadin, na Somália, na Eritreia, na Chechênia e na Bósnia-Herzegovina, massacres que arrepiam o corpo e tremem a consciência. Tudo isso ocorreu diante dos olhos e ouvidos do mundo, e não apenas não responderam a essas atrocidades, mas também numa clara conspiração entre os EUA e seus aliados, sob a cobertura da imoral Nações Unidas, impediram que o povo desapropriado obtivesse armas para se defender. O povo do Islã despertou e deu-se conta de que é o principal alvo da agressão da aliança entre sionistas e cruzados. […] A última e a maior dessas agressões, impostas aos muçulmanos desde a morte do profeta […] é a ocupação da Terra das Duas Mesquitas Sagradas […] pelos exércitos dos cruzados americanos e seus aliados […].[15]

            Nesta sua “mensagem aos muçulmanos em todo o mundo, e especialmente na Península Arábica”, também conhecida como “Epístola Ladenesa”, a mais longa das primeiras mensagens escritas por Osama bin Laden, seus argumentos são apresentados na forma duma fatwa (um edito jurídico) autorizando a jihad contra os norte-americanos. Isso pode fazer-nos questionar sua autoridade para tal: Osama bin Laden não possuía os requisitos tradicionais para emitir uma fatwa aos muçulmanos do mundo, já que não possuía a formação exigida para ser um mujtahid (erudito no direito islâmico) numa das madhhabs (escolas/tradições de interpretação jurídica) islâmicas. Vale ressaltar aqui que o Islã sunita, o corpo de tradições e seitas seguido pela maioria dos muçulmanos e pelo próprio bin Laden, divide-se em pelo menos quatro grandes madhhabs (escolas jurídicas, que não correspondem a seitas, mas a uma forma de interpretar a lei islâmica): a hanifita, a malikita, a shafi’ita e a hanbalita – esta última sendo a escola dominante na Arábia Saudita, e a escola seguida por Ahmad ibn Taymiyya (c.1263-1328) – o jurista mais citado por bin Laden em sua mensagem –, e Sayyid Qutb, além de outros líderes islamitas.

            Este pronunciamento de bin Laden indicava uma mudança de foco em sua atuação pública, já que anteriormente, suas mensagens centravam-se no ataque à Casa Real saudita. Desde 1994, quando fundara o ARC (Advice and Reform Committee [Comitê de Conselho e Reforma]) – cujo escritório estava sediado em Londres, mas cujos comunicados eram preparados por bin Laden, no Sudão, onde vivia exilado –, os textos assinados por bin Laden pressionavam pela reforma na própria Arábia Saudita, e apontavam para a Casa Real como principal responsável pelas mazelas no reino. A partir da “Epístola Ladenesa”, seu principal alvo passa a ser os Estados Unidos.

            A separação do mundo entre “eles” e “nós”, o que reflete a visão de Sayyid Qutb da separação do mundo entre jahiliyyah e Islã, é essencial para a vitimização do “povo do Islã” na retórica utilizada por Osama bin Laden nesse pronunciamento. Essa vitimização é discursivamente construída por meio da listagem dos supostos massacres impostos ao “povo do Islã” pela “aliança de sionistas e cruzados” – que, neste pronunciamento, refere-se especificamente aos Estados Unidos e Israel, mas também aos seus “colaboradores” (o regime saudita, governos pseudo-islâmicos corruptos e as Nações Unidas). E se, mesmo depois da listagem de todas as agressões ao “povo do Islã” citadas por bin Laden, restasse alguma dúvida de que um muçulmano devesse juntar-se à jihad contra a “aliança de sionistas e cruzados”, ele cita a maior de todas as agressões sofridas “desde a morte do profeta”: a “ocupação da Terra das Duas Mesquitas Sagradas” pelos americanos e seus aliados – a expressão “Terra das Duas Mesquitas Sagradas” (bilad al-haramayn, em árabe) é uma referência clássica à Península Arábica, terra onde estão as mesquitas de Meca e Medina. Por “ocupação”, ele refere-se à presença das tropas norte-americanas e aliadas na Arábia Saudita a partir da 2ª Guerra do Golfo, 1990-1991. Assim, bin Laden se esforça para convencer seus leitores de que o Islã está sob ataque e que, por isso, é hora de o “povo do Islã” reagir.

            Ao longo de sua mensagem, Osama bin Laden aponta, pelo menos, seis razões para a jihad contra os Estados Unidos: 1) a presença norte-americana na “Terra das Duas Mesquitas Sagradas”; 2) a proteção dada pelos Estados Unidos a governos tiranos em terras muçulmanas; 3) o apoio norte-americano a Israel; 4) o apoio norte-americano a países que oprimem aos muçulmanos, especialmente Rússia, China e Índia; 5) a exploração perpetrada pelos norte-americanos das fontes de energia nas terras muçulmanas a preços abaixo do valor de mercado; e 6) a presença militar norte-americana em terras muçulmanas fora da Península Árabe.

            E, antes de encerrar sua mensagem com uma prece de súplica a Deus por socorro, ele dirige seu clamor aos muçulmanos que leem sua mensagem:

[…] Meus irmãos muçulmanos ao redor do mundo: Vossos irmãos na Palestina e na Terra das Duas Mesquitas Sagradas clamam por vossa ajuda e vos pedem que tomeis parte na luta contra vosso inimigo comum, os norte-americanos e os israelenses. Eles pedem que façais o que puderdes, com vossos próprios meios e habilidades, para que, juntos, expulseis os inimigos, vencidos e humilhados, das terras santas do Islã. […][16]

            Como essa primeira mensagem ladenesa recebeu críticas, por Osama bin Laden não possuir as qualificações necessárias para interpretar o Corão e emitir fatwas, sua segunda mensagem, de 1998, contou com a assinatura de apoio de líderes de quatro outras organizações jihadistas: Ayman al-Zawahiri (do Grupo Jihad, no Egito – e que substituiria bin Laden, após sua execução, como líder da al-Qa’ida); Abu-Yassir Rifa’i Ahmad Taha (Grupo Islâmico, no Egito); Mir Hamzah (Jamiat-ul-Ulema-e-Pakistan, no Paquistão); e Fazlul Rahman (Movimento Jihad, em Bangladesh). Uma vez mais, o texto enumera acusações contra a “aliança de sionistas e cruzados” e contra os Estados Unidos, e prossegue:

[…] Todos esses crimes e pecados cometidos pelos norte-americanos são uma clara declaração de guerra a Deus, a seu mensageiro e aos muçulmanos. E os sábios têm, no decorrer de toda a história islâmica, unanimemente concordado que a jihad é um dever individual compulsório se um inimigo ataca países muçulmanos. […] Com base nisso, e de acordo com a vontade de Deus, emitimos a todos os muçulmanos o seguinte julgamento:

Matar os norte-americanos e seus aliados, civis e militares, é um dever individual compulsório de todo muçulmano, em todo país onde se possa fazê-lo, para que a Mesquita de al-Aqsa e a Santa Mesquita sejam libertas de seu domínio, para que seus exércitos saiam de todas as terras do Islã, vencidos, derrotados e incapazes de ameaçarem qualquer muçulmano. […][17]

            Esse é um texto bem mais radical em suas conclusões, mas possui um termo jurídico interessante na frase “[…] emitimos a todos os muçulmanos o seguinte hukm”, que aqui traduzimos como “julgamento”. Esse termo possui uma força menor que o termo fatwa, em se referindo a uma obrigação legal, de acordo com o direito islâmico, e seu uso pode indicar uma consciência da discordância que se ergueria contra seu “julgamento”. De qualquer maneira, há uma diferença gradativa entre a jihad pensada na primeira declaração de bin Laden e esta. Se no texto de 1996, a conclamação era que se expulsasse os norte-americanos e israelenses das terras do Islã, aqui, o dever é matar civis e militares dentre os norte-americanos e seus aliados – uma conclusão que exigiu, ao longo do texto, uma série de reconstruções e mutilações das citações corânicas para que seu argumento soasse convincente aos leitores.

4. Considerações Finais

            Os escritos divulgados por Osama bin Laden demonstram uma crescente em seu radicalismo retórico, apesar do refinamento de seu uso linguístico e seu esforço para criar uma justificativa para seu apelo à jihad. O que pode-se perceber, contudo, é sua clara referenciação ao pensamento jihadista enraizado na tradição codificada por Sayyid Qutb. Sua preocupação, nos escritos, em apresentar razões específicas para suas empreitadas, e sempre alertando aqueles que considera como inimigos, segue o modelo de seu suposto mentor intelectual. Ousamos, assim, afirmar que a versão de Islã político de bin Laden pertencesse a uma tradição intelectual que tem se desenvolvido há, pelo menos, um século em países do Oriente Médio e de lá tem se expandido para outras partes do mundo, como resposta às necessidades dessas sociedades em lidarem com sua experiência ou percepção de aspectos da modernidade.

            A importância da compreensão das origens de tais perspectivas políticas está no fato de as mesmas terem se tornado mais visíveis em nossos dias, e nem sempre se perceber aquilo que muitas vezes é visto apenas como uma questão religiosa ou o que é lido, em nossa sociedade, como uma busca da “democracia” ou “liberdade”. Em muitos dos conflitos políticos em países com uma população majoritariamente identificada como muçulmana – a chamada “Primavera Árabe” é um exemplo – o pensamento subjacente ao mover popular está enraizado em tradições islamitas, e olhar para o fenômeno social sem lentes cobertas por esteriótipos pode ajudar a desenvolver-se um entendimento de tais realidades.

5. Referências Bibliográficas

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[1]     DENOEUX, Guilain. The forgotten swamp: navigating political Islam. Middle East Policy, 9, 2 jun 2002, p. 61. [Tradução nossa do inglês.]

[2]     BERGER, P. L. The desecularization of the world: a global overview. In: _______(ed.). The Desecularization of the World: Resurgent Religion and World Politics. Washington: Ethics and Public Policy Center, 1999. p. 7.

[3]     Uma das muitas evidências dessa aberta multiformidade – que contradiria a compreensão tradicional do termo “fundamentalismo”, como qualificativo teológico – encontra-se num texto escrito pelo intelectual que discutiremos a seguir: “Frequentemente descobrimos que em questões de fé ou de crença abstrata, o Islã faz pronunciamentos específicos e definitivos, mas quando se trata de questões referentes à tradição ou a práticas sociais complexas, ele toma uma abordagem mais pragmática e medida […].” QUTB, Sayyid. In the Shade of the Qur’an [À sombra do Corão], vol. 1. Nova York: The Islamic Foundation, 2003. p. 281. [Tradução nossa do inglês.]

[4]     QUTB, Sayyid. The America I Have Seen. Nova York: Islamic Publications International, 2000. p. 10.

[5]     QUTB, Sayyid. Ma’alim fi’l-Tariq [Marcos à beira do caminho]. Amã, Jordânia: Maktabat al-Aqsa, 1981. p. 15. [Tradução nossa do árabe.]

[6]     Ibid., p. 16-17.

[7]     Ibid., p. 17-18.

[8]     KEPEL, Gilles. Muslim Extremism in Egypt. Berkeley: University of California Press, 1993. p. 61-66.

[9]     WRIGHT, Lawrence. The Looming Tower: Al-Qaeda and the Road to 9/11. Nova York: Alfred A. Knopf, 2006. p. 98.

[10]   FISK, Robert. Anti-Soviet warrior puts his army on the road to peace: The Saudi businessman who recruited mujahedin now uses them for large-scale building projects in Sudan. The Independent, Londres, p. 10, 06 dez. 1993. [Tradução nossa do inglês.]

[11]   DORRONSORO, G. Revolution Unending: Afghanistan, 1979 to the Present. Londres: C. Hurst & Co. Publishers, 2005.

[12]   FISK, Robert. Ibid., p.10. [Tradução nossa do inglês.]

[13]   KAPLAN, Robert D. Soldiers of God: With the Mujahidin in Afghanistan. Boston: Houghton Mifflin, 1990. p. 227. 

[14]   SCHULTHEIS, Rob. Night Letters: Inside Wartime Afghanistan. Nova York: Crown, 1992.

[15]   BIN LADEN, Osama. Declaração de jihad contra os americanos ocupando a Terra das Duas Mesquitas Sagradas; Expulsai os hereges da Península Arábica. Al-Quds al-Arabi, Londres, p. 1, 23 ago 1996. [Tradução nossa do árabe.]

[16]  Ibid., p. 12. [Tradução nossa do árabe.]

[17]  BIN LADEN, Osama, et al. Nass Bayan al-Jabhah al-Islamiyah al-Alamiyah li Jihad al-Yahud wa-al-Salibiyin [Declaração de Jihad da Frente Islâmica Mundial Contra os Judeus e os Cruzados]. Al-Quds al-Arabi, Londres, p.3, 23 fev 1998. [Tradução nossa do árabe.]

 

“O Renascimento Islamita” ou “A Primavera Que Conseguiu Florescer”: Uma Breve Reflexão Sobre o Clamor do “sha’ab” na Primavera Árabe

Manifestação na praça Tahrir, Cairo. Egito, 08/07/2011.

Foto: Mohamed Abd El-Ghany/Reuters

[Originalmente publicado em 12 de julho de 2014.]

Gibson da Costa

Parece que ainda podemos ouvir os gritos dos manifestantes egípcios vociferarem as palavras que se tornaram o slogan da prévia duma nova era: ash-sha’b yurid isqat an-nizam (o povo quer derrubar o regime). Esse grito do sha’ab1, o povo – uma entidade até então impotente, se não inexistente, na política egípcia –, pareceu sinalizar, a partir de janeiro de 2011 (anteriorizado pelo levante na Tunísia, iniciado em dezembro de 2010, e pelos da Argélia, Jordânia e Omã, respectivamente), um novo momento na conturbada história egípcia e de alguns outros países do mundo árabe. Aquele grito, associado à brilhante construção semântica de Marc Lynch, que foi, supostamente, o primeiro a utilizar a expressão Primavera Árabe para se referir àqueles eventos em seu blog no sítio da revista Foreign Policy, em 6 de janeiro de 20112; mas também associado à suposta estratégia do governo de Barack Obama de apoderar-se dessa adjetivação para poder controlar a imagem do movimento e o caminho que o mesmo seguiria3, fez com que se pensasse que aquele movimento fosse uma revolução democrática à la americana/francesa. A pressão ocidental e o romantismo retórico de sua imprensa, e do mundo digital globalizado, entretanto, foram insuficientes para encapsular a experiência e as expectativas do sha’ab egípcio e do resto do mundo árabe.


O que é mais relevante sobre o slogan dos manifestantes egípcios é a diferença quando comparado aos costumeiros gritos revolucionários. Para os manifestantes, era insuficiente gritar “Abaixo o regime!”. Aqueles súditos de autocratas, ditadores, e imãs supostamente teocratas resolveram tomar em suas mãos a soberania popular, e em seu slogan adicionaram o singular coletivo “o povo quer”. O sha’ab agora afirmava sua existência. O sha’ab queria agora que sua voz fosse ouvida. O sha’ab queria escrever sua história coletiva sem amarras ditatoriais. E, se acreditássemos no que a imprensa e as autoridades políticas ocidentais queriam que acreditássemos, o sha’ab queria a democracia e a liberdade ocidentais. A emergência do próprio sha’ab, entretanto, representa, para nós, um sentido mais significativo daqueles movimentos que se alastraram pelo mundo árabe. Sua busca por uma alternativa política, entretanto, encontraria respostas numa tradição incompatível com a noção que a “opinião ocidental” tinha duma revolução democrática. A Primavera Árabe tornar-se-ia o Renascimento Islamita.


Faz-se importante, aqui, traçar uma clara distinção entre o Islã, uma religião, e aquilo que aqui chamamos de Islã político, uma ideologia sociopolítica baseada numa leitura específica do Islã. Enquanto, aqui, a religião islâmica/muçulmana é uma questão de identidade pessoal em diálogo com uma tradição religiosa, a ideologia sociopolítica islamita serve a uma agenda política específica. Esse é o sentido básico, mesmo que reconhecidamente limitado, que atribuímos a esses termos neste ensaio. Ademais, utilizamos o adjetivo “islamita” para referir-nos exclusivamente ao Islã político; enquanto utilizamos “muçulmano” e/ou “islâmico” como adjetivo relativo à religião do Islã.


Não surpreende a emergência política de partidos islamitas após os levantes iniciados em 2010, especialmente no que tange à Gamma’at al-ikhwan al-muslimun (a Irmandade Muçulmana do Egito). Por décadas, a Irmandade Muçulmana usou a repressão do regime para organizar suas redes sociais alternativas e construir uma imagem semi-heroica. A Irmandade transformou sua perseguição pelo regime em capital sociopolítico, permitindo-lhe recrutar novos membros e aumentar sua influência sobre diferentes grupos sociais. Ademais, com o passar do tempo, se ajustou às regras do jogo político, participando de eleições, construindo alianças com diferentes grupos políticos, e, em alguns momentos, estimulando a repressão do regime para aumentar seu apelo público. A eficiente rede social construída e mantida por ela provia de serviços de saúde e educação a abrigo para os mais pobres, o que tornou-se uma garantia de ganhos políticos entre uma grande parcela dos eleitores egípcios4.

A ideologia islamita, como aquela defendida pela Irmandade Muçulmana, difundiu-se como uma promessa messiânica entre jovens egípcios que haviam sido marginalizados pela modernização e, em sua visão, pelo status de haram (iniquidade) atribuído ao antigo regime. Essa ideologia político-religiosa constituía, para muitos jovens urbanos conservadores, a única alternativa ao mundo “ocidentalizado” e divorciado do Islã (apesar de não necessariamente laicizado) que se lhes impunha. Os líderes islamitas, assim, não tiveram problemas para ecoar entre esses jovens sua “sagrada missão” de estabelecer um “Estado Islâmico”. Décadas de tradição na defesa duma transformação tanto das estruturas políticas quanto das normas e valores sociais, para ajustá-los à sua visão, preparou o caminho para que os eleitores egípcios conhecessem a alternativa que se lhes apresentava. Portanto, mesmo considerando a direção pragmática tomada pela Irmandade após a “Primavera”, e mesmo antes, julgamos precipitadas as perspectivas que viam os levantes como uma “revolução pós-islâmica”5.


Pode ser verdade que os jovens que iniciaram as manifestações nas ruas egípcias não fossem, em sua maioria, islamitas, ou, mais especificamente, integrassem a Irmandade Muçulmana, como afirmava-se repetidamente em noticiários televisivos da Al Jazeera, da BBC, da CNN, da MSNBC, da TF1, da TVE e da Deutsche Welle que acompanhamos. Contudo, a julgar pelo que se seguiu no palco político daquele país, não é difícil imaginar que a Irmandade tenha se contido durante os levantes para evitar a repressão e para diminuir o temor ocidental de sua presença. Também, é importante recordar que a Irmandade Muçulmana não foi o único grupo islamita a participar do movimento, já que outros grupos menores e independentes – e mais radicias – se envolveram no levante. Assim, considerando o envolvimento de tais grupos com agendas políticas supostamente baseadas na religião, assim como a utilização de sermões religiosos em mesquitas ao redor do país para a mobilização das massas durante o período, não poderíamos aceitar a esperançosa visão de que aquela fosse uma “revolução pós-islâmica” – como se o Islã e, mais especificamente, a tradição islamita estivessem ausentes das alternativas mais imediatamente disponíveis ao sha’ab.


Diferentemente da visão esperançosa que Oliver Roy, por exemplo, articulou num artigo para o blog do The European Institute ainda em fevereiro de 2011, onde enfatizava o caráter pós-islâmico daquilo que chamou de “revolução”, em grande parte as demandas com as quais o sha’ab egípcio se engajou se revestiam dum ethos próprio ao mito muçulmano, e, assim, podiam manter uma comunicação com tradições islamitas mais moderadas. Logo, se é verdade que essas demandas se focavam em “valores humanos universais”6, a interpretação que faziam desses valores se revestiria duma roupagem mais próxima à sua própria experiência sociocultural – enormemente moldada pelo imaginário muçulmano. O autor, entretanto, não vira ainda, em fevereiro de 2011, como se dariam os acontecimentos políticos no Egito e nos demais países árabes atingidos por aqueles movimentos. Seu julgamento hoje, à luz do que resultaria daqueles levantes populares, só reforça a visão de que todo o otimismo que se criou foi deveras antecipado. Ao que nos parece, não havia, no Egito ou nos outros países da “Primavera Árabe”, uma alternativa política capaz de realizar uma tal “revolução pós-islâmica”.


Os resultados das eleições de fins de 2011 mostraram que, mesmo em disputas eleitorais relativamente livres, o sha’ab egípcio optaria pelos políticos islamitas, como já ocorrera nas eleições de 2005. Para as eleições de 2011, novos partidos islamitas de orientação salafista foram organizados. A soma dos deputados do Hizb al-Hurriya wal-‘Adala (Partido Liberdade e Justiça) – o partido da Irmandade Muçulmana7 – com os desses partidos salafistas somava cerca de dois terços da Assembleia Legislativa egípcia. Desses novos partidos, o mais numeroso e influente era o Hizb al-Nur8 [Partido da Luz], partido criado pela al-Da’wa al-Salafiyya [O Chamado Salafista], um movimento islamita radical. Além deles, reorganizou-se o Hizb al-Wasat [Partido do Centro], originalmente fundado em 1996, mas tornado ilegal subsequentemente, de orientação islamita moderada e defendendo uma visão bem tolerante e diversa do papel do Islã na sociedade9; e fundou-se o Hizb al-Benaa wa al-Tanmia10 [Partido da Construção e do Desenvolvimento], um partido islamita associado ao al-Jama’a al-Islamiyya [Grupo Islâmico].

Dos 498 deputados eleitos de forma direta – 10 outros eram indicados pelos militares no poder –, 235 eram do al-Hurriya wal-‘Adala, 121 do al-Nur, 10 do al-Wasat, 9 do al-Benaa, e os demais ficaram com partidos menores11. Em outras palavras, a grande maioria das vagas ficaram com partidos islamitas, partidos defensores, duma forma ou de outra, de ideologias baseadas numa visão particular da religião islâmica. Isso, em termos estatísticos, é mais do que suficiente para convencer-nos que o qualificativo de “revolução pós-islâmica” é equivocado no que concerne especificamente ao Egito.

Com isso, não queremos insinuar que o simples fato de o país possuir uma população majoritariamente muçulmana faria com que os eleitores automaticamente rejeitassem opções secularistas e empossassem um regime islamita. O que os eleitores buscaram após a “Primavera”, contudo, parece ter sido opções que representassem uma forte oposição ao regime deposto. Os variados grupos islamitas conseguiam representar bem isso por terem décadas de história na oposição, tendo sido perseguidos pelo regime deposto. Sua história dava-lhes credibilidade e legitimidade aos olhos da maioria dos eleitores egípcios. O mesmo, entretanto, não poderia ser dito dos partidos secularistas, fossem de orientação liberal ou socialista, por não terem uma história na oposição ao regime deposto.


Enquanto o regime deposto havia tentado controlar o establishment religioso, influenciando as lideranças religiosas da Universidade al-Azhar, e se esforçando para silenciar as oposições islamitas por décadas (e não apenas o regime deposto, como também os anteriores, desde pelo menos a emergência da Irmandade Muçulmana como força política), essas oposições continuaram – mesmo que ilegalmente – suas atividades sociais, políticas e religiosas na oposição ao regime. Pode-se supor que, na imaginação do sha’ab, a religião tornara-se o sinalizador dos grupos que tiveram a coragem de desafiar um regime ditatorial. A atitude desafiadora desses grupos, associada a suas obras sociais, deu-lhes um carisma que nenhum partido secularista conseguiu alcançar nas eleições que se seguiram aos levantes de 2011. Isso foi, contudo, o que ocorreu apenas no início da transição.


Como em todo drama político, não demorou muito para que os antigos heróis fossem, também, acusados de ineficiência, corrupção etc. Veio o golpe de 3 de julho de 2013, e a deposição do presidente Mohammed Morsy, membro da al-Hurriya wal-‘Adala, da Presidência do país. A Irmandade Muçulmana foi, mais uma vez, posta na ilegalidade. O próprio sha’ab demostrava-se, aparentemente, insatisfeito com a forma como o Egito estava, especialmente em termos econômicos e sociais. Os militares, insatisfeitos com seus inimigos no poder, aproveitaram-se da situação. Mais violência, mais caos12. Era o fim da “revolução pós-islâmica”?


O complexo contexto histórico, não apenas do Egito como também de toda a região, pode tornar toda a dinâmica sociopolítica e, consequentemente, eleitoral difícil de compreender. Como compreender a conciliação entre os anseios do sha’ab e suas escolhas eleitorais “livres” (talvez devêssemos, na verdade, tentar compreender o sentido de “liberdade” no contexto egípcio)?


Se um dia haverá uma “revolução pós-islâmica” no Egito, é muito cedo para saber – apesar de os especialistas não terem tido nenhum pudor em se apressar para identificar assim os eventos políticos no país e na região em 2011. Assim como se poderia dizer que também era cedo demais para qualificar como “revolução” as transformações políticas que se tentavam fazer – a depender de como se define “revolução”, claro. A verdadeira “revolução”, entretanto, e talvez a única que tenha realmente ocorrido tanto no Egito como em outros países atingidos pelo clima da “Primavera”, foi a revolução do sha’ab. Essa revolução pode ter sido trazida à tona pelo renascimento islamita, mas, se um dia haverá alguma mudança democrática permanente naquela sociedade, essa só poderá ocorrer por seu real senhor: o sha’ab.


Referências

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REVOLUÇÃO “pós-islâmica” afectará todo o sistema global. Diário de Notícias, 11 março 2011. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1803829&seccao=Europa&page=-1>. Acesso em: 15 fev 2014.

ROY, Oliver. Post-Islamic Revolution [Revolução pós-islâmica]. The European Institute, 17 fev 2011. Disponível em: <http://www.europeaninstitute.org/February-2011/qpost-islamic-revolutionq-events-in-egypt-analyzed-by-french-expert-on-political-islam.html>. Acesso em: 15 fev 2014.

SOCIAL programmes bolster appeal of Muslim Brotherhood [Programas sociais reforçam o apelo da Irmandade Muçulmana]. IRIN News, 22 fev 2006. Disponível em: <http://www.irinnews.org/report/26150/egypt-social-programmes-bolster-appeal-of-muslim-brotherhood>. Acesso em: 15 fev 2014.

WEDEMAN, Ben; SAYAH, Reza; SMITH, Matt. Coup topples Egypt’s Morsy; deposed president under ‘house arrest’. CNN, 4 jul 2013. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/07/03/world/meast/egypt-protests/>. Acesso em: 15 fev 2014.

 NOTAS:

1 Utilizaremos o termo árabe ao longo deste texto para nos referirmos ao “povo” por ele possuir um sentido retórico importantíssimo aqui, que não seria alcançado por uma tradução apenas aproximada.

2 LYNCH, Marc. Obama’s Arab Spring [A Primavera Árabe de Obama]. Foreign Policy, 6 jan 2011. Disponível em: <http://mideastafrica.foreignpolicy.com/posts/2011/01/06/obamas_arab_spring>. Acesso em: 15 fev 2014.

3 MASSAD, Joseph. The ‘Arab Spring’ and other American Seasons [A ‘Primavera Árabe’ e outras estações norte-americanas]. Al Jazeera, 29 ago 2012. Disponível em:<http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/08/201282972539153865.html>. Acesso em: 15 fev 2014.

4 SOCIAL programmes bolster appeal of Muslim Brotherhood [Programas sociais reforçam o apelo da Irmandade Muçulmana]. IRIN News, 22 fev 2006. Disponível em: <http://www.irinnews.org/report/26150/egypt-social-programmes-bolster-appeal-of-muslim-brotherhood>. Acesso em: 15 fev 2014.

5 REVOLUÇÃO “pós-islâmica” afectará todo o sistema global. Diário de Notícias, 11 março 2011. Disponível em:

6 ROY, Oliver. Post-Islamic Revolution [Revolução pós-islâmica]. The European Institute, 17 fev 2011. Disponível em: <http://www.europeaninstitute.org/February-2011/qpost-islamic-revolutionq-events-in-egypt-analyzed-by-french-expert-on-political-islam.html >. Acesso em: 15 fev 2014.

7 Sítio oficial da Gamma’at al-ikhwan al-muslimun [Irmandade Muçulmana egípcia]: <http://www.ikhwanonline.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.

8 Sítio oficial do Hizb al-Nur [Partido da Luz]: <http://www.alnourparty.org/>. Acesso em: 15 fev 2014.

9 Sítio oficial do Hizb al-Wasat [Partido do Centro]: <http://www.alwasatparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.

10 Sítio oficial do Hizb al-Benaa wa al-Tanmia [Partido da Construção e do Desenvolvimento]: <http://benaaparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.

11 EGYPT’S Islamist Parties win elections to Parliament. BBC, 21 jan 2012. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-middle-east-16665748>. Acesso em: 15 fev 2014.

12 WEDEMAN, Ben; SAYAH, Reza; SMITH, Matt. Coup topples Egypt’s Morsy; deposed president under ‘house arrest’. CNN, 4 jul 2013. disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/07/03/world/meast/egypt-protests/>. Acesso em: 15 fev 2014.

Os nazistas eram socialistas?: uma brevíssima resposta

A inscrição lê, em alemão, “Dia do Trabalho, 1934”.
A imagem é frequentemente divulgada por grupos da direita política – nos EUA, Brasil e outros países –
como eviência de que o Nazismo teria sido, na verdade, um movimento socialista e não de extrema direita.

Gibson da Costa

 

O contexto dessa atual “discussão” (ou seria acusação?!) nas redes sociais é o conflito por legitimação política de grupos que se identificam como “direita” no Brasil. Se vocês prestarem muita atenção aos textos que são divulgados online sobre o assunto – e estou pensando em sites como os do Instituto Mises e do Ilisp –, e analisarem quem os escreveram, onde, quando e suas razões, verão que suas conclusões atendem aos seus próprios interesses partidários.

Mas, permitam-me fazer algumas observações:

Apesar de o nome do partido nazista ter sido “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”, dizer que o mesmo era um partido “socialista” simplesmente por causa do nome é como dizer que “Little Brazil”, em Manhattan, seja uma parte da República Federativa do Brasil simplesmente por causa de como é chamado!

O nome do partido foi uma estratégia política para lidar com as oposições socialista e comunista, arrastando os “trabalhadores” alemães para as fileiras nazistas. No Brasil houve estratégias semelhantes, no que se refere a nomes de partidos: Getúlio Vargas fundou o Partido Trabalhista Brasileiro, ao fim de sua ditadura marcada pelo anticomunismo – ele era socialista simplesmente porque utilizou o termo “trabalhista” no nome do partido que fundou? Claro que não! O nome que deu ao partido foi simplesmente uma tática de propaganda para enfraquecer as oposições comunista e socialista; atualmente, o PFL, depois de uma história de rejeição por conta de seu passado, se refundou em 2007 como “Democratas” – percebem que o nome pode fazer com que pessoas menos informadas criem uma conexão entre o DEM e o Partido Democrata americano?; o PSDB é o Partido da Social Democracia Brasileira – e vocês poderiam se perguntar: “social democracia”? Sério?!

Então, supor que os nazistas formassem um partido “socialista” simplesmente porque os termos “socialista” e “trabalhadores” aparecem em seu nome é fechar os olhos para as táticas políticas utilizadas para conquistar apoio eleitoral ou miliciano. Na verdade, o nazifascismo como um todo e o nazismo em particular são temas que merecem muito mais cuidado do que essa simplificação de “direita” versus “esquerda”. Eugen Weber, por exemplo, chamava essas classificações do fascismo como “direita” ou “esquerda” de estereótipos anacrônicos – e eu não poderia pensar em melhor qualificativo! O nazismo encontra suas origens ideológicas em variadas tradições, tanto em termos de ligações diretas quanto em conexões aleatórias. Como afirmam Peter Davies e Derek Lynch, os nazistas souberam “identificar, cooptar e perverter ideias e conceitos para seu próprio uso e para fins de credibilidade” (2002: 90).

A tolice dos comentários expostos em sites como os do Instituto Mises ou do Ilisp é que se tratam de observações presas a perspectivas econômicas anacrônicas – ou seja, além de limitarem um tema tão amplo a questões econômicas, projetam sobre o passado circunstâncias e questões do presente, desconsiderando os contextos dos atores históricos daquela época. A retórica utilizada – seguindo a mesma lógica dos livros didáticos de história da década de 1980, por exemplo – tenta criar uma oposição entre “socialismo” e “capitalismo” no que tange a aspectos econômicos. Entretanto, o nazifascismo não possui uma relação de origem direta com a economia em si, mas sim com o nacionalismo de Estado e tudo o que ele significava (ao menos de acordo com um grande número de autores, como Weber, Mann, Mommsen, Siegelbaum, Lüdtke, Hoffmann, Geyer, Lynch, Thorpe, Paxton, Griffin etc).

Ademais, os próprios autores desses textos divulgados nos sites da neodireita brasileira não demonstram uma compreensão histórica do termo “capitalismo”. Ser contrário ao “capitalismo”, no contexto do entreguerras, não significava ser “socialista”. “Capitalismo” se referia a um sistema regido pelas corporações, o discurso desses líderes políticos nacionalistas europeus enfatizava a lealdade à “nação”; ou seja, criavam uma oposição entre “nação” e “corporações” – atualmente, o mesmo conceito se encontra, por exemplo, na retórica de Donald Trump. Independentemente do nome que se dê às posições políticas de certos atores (direita, esquerda, liberal, socialista, anarquista, comunista etc), se se opunham ao domínio de corporações, eles se declaravam anticapitalistas!… Mussolini e Hitler são exemplos claros disso nos movimentos ultradireitistas.

A faixa diz, em alemão, “Morte ao marxismo”.

Por que, então, o nazifascismo é identificado como sendo de direita, mesmo possuindo certos traços aparentemente socialistas?

Retomo a adjetivação utilizada por Eugen Weber para se referir a essas classificações dos movimentos fascistas como sendo de “direita” ou “esquerda”: tratam-se de estereótipos anacrônicos!… A obsessão com seu uso, como bem demonstram os sites de propaganda da neodireita brasileira, parece ter mais a ver com legitimação política do que com historiografia.

Entretanto, há várias razões para identificar os movimentos fascistas como “[ultra]direitistas”. Uma delas é o simples fato de tanto os grupos que lideravam esses movimentos quanto o cerne das ideias que defendiam ter tido suas origens naquilo que se chamava de “direita”. O vocabulário que buscava falsear os conceitos utilizados por socialistas – “socialismo”, “trabalhadores” etc – mascaravam o fato de ideias e conceitos socialistas terem sido pervertidos para que os partidos fascistas encontrassem legitimidade dentre o eleitorado e as organizações trabalhistas. Dentre suas bandeiras, encontravam-se: a compreensão da “nação” como uma entidade orgânica, integral e transcendente, que deveria ser defendida de seus inimigos internos e externos; a preocupação com o vigor nacional e sua defesa contra elementos que o pusessem em perigo; a noção de destino especial; a preocupação com pureza racial; o anti-intelectualismo; um comunitarismo necessário àquela compreensão de “nação” etc.

Sim, é verdade que nazifascistas e comunistas partilhavam de muitas ideias, mas quando estudamos a história política, não avaliamos os atores apenas com base no vocabulário que utilizam ou nas noções que dizem defender – avaliamos, principalmente, suas ações, quem eram, com quem se associavam, quem perseguiam etc. E é com base nisso que o nazifascismo tem sido caracterizado como de “direita” – independentemente do quão anacrônicos e inapropriados sejam os termos “direita” e “esquerda”.

 
 

Referências citadas:

DAVIES, Peter; LYNCH, Derek. The Routledge Companion to Fascism and the Far Right. Nova York: Routledge, 2002.

WEBER, Eugen. Revolution? Counterrevolution? What Revolution?. In: Journal of Contemporary History, Vol. 9, No. 2 (Apr., 1974), p.3-47.

 
 

“A violência… você combate com violência”, afirma Bolsonaro

Resolvi encontrar online a entrevista de Danilo Gentili com Jair Bolsonaro, e me forcei a assisti-la. Queria dar uma oportunidade ao mal-afamado deputado brasileiro para desfazer quaisquer preconceitos que tinha contra ele. E, confesso, não me surpreendi com absolutamente nada – a não ser com o fato de ele ser pago para representar seus eleitores, ou, antes, com o fato de haver eleitores que comprem tal tipo de discurso em pleno século XXI.

Quando Jair Bolsonaro dá voz à sua estreita visão de mundo (e, enquanto Deputado, à sua visão inconstitucional), ancorada no saudosismo da Guerra Fria, só prova que não possui uma compreensão do Estado Democrático de Direito que sua função de Deputado Federal deveria representar. Ele, talvez, não tenha lido ou compreendido os artigos iniciais da Constituição à qual deveria se submeter, tanto como cidadão quanto (principalmente) como Deputado:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[…]

III – a dignidade da pessoa humana;

[…]

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[…]

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[…]

II – prevalência dos direitos humanos;

[…]

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

[…]

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[…]

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[…]

XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

[…]

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

[…]

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; […]

Os artigos não são reflexo duma “política de direitos humanos” que, para o entrevistado, significaria um obstáculo ao que chama de segurança pública. Antes, as políticas que lidam com questões referentes aos direitos humanos é que têm sua origem na Constituição Federal. Assim, defender os direitos de qualquer pessoa que tenha sido flagrada em delito ou condenada como criminosa não é “defender marginal”; é, antes, defender a Constituição!

O artigo 5º assevera a inviolabilidade do direito à vida de todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no país; desta forma, as propostas do deputado é que desrespeitam a Constituição brasileira. Como agente do Estado, ele deve saber que suas ações e palavras devem estar apoiadas nos princípios e normas constitucionais. Afirmar que “A violência… você combate com violência” é violar esses princípios e normas. De acordo com a Constituição Federal, a violência se combate com a lei!… E isso, a propósito, não é ser “politicamente correto”, é se submeter à Constituição – a base do Estado Democrático de Direito brasileiro!

A ignorância do suposto pré-candidato à Presidência acerca da Lei chega a ser assustadora e patética; especialmente quando se põe a “trumpizar” seu discurso, tratando sobre questões como a imigração. O deputado, provavelmente, não sabe que o Brasil é parte duma comunidade chamada “Mercosul”, e não sabe que há obrigações ligadas à membresia nessa comunidade para com os demais membros!

Por fim, para não dizer que não apreciei nada que tenha dito, concordo com suas seguintes palavras: “Não tem solução fácil para o Brasil e não existe salvador da pátria para o nosso país.” Essa é uma confissão que deveria ressoar nos ouvidos de seus admiradores. Realmente não existe salvador da pátria algum: Bolsonaro não é a salvação do Brasil!

Heil, Trump!… ou… Trump, o grande pai da América!

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Fonte: WGCL – TV Atlanta, CBS 46

Confesso que não sei o que pensar quando vejo os comentários de certos conhecidos sobre o pronunciamento de posse de Donald Trump ontem. Algumas dessas pessoas – brasileiros, a propósito – me surpreendem por aparentemente não se darem conta do que estava por trás daquelas palavras e, assim, aplaudirem o absurdo como se fora fonte de esperança política.

Permitam-me, então, apontar algumas coisas que ouvi naquelas palavras:

Juntos determinaremos os rumos da América e do mundo por muito tempo.

Significaria isso que a visão política de Trump não é a de um Império que influencie o mundo, levando liberdade e democracia aos povos “não livres”, contribuindo para a paz e estabilidade das relações internacionais (a tradicional noção dum “Império do bem”), mas, antes, a de um “Reich” que domina com pulso de ferro por um milênio?

Eu nem precisaria ser um professor de História para reconhecer os gritos do passado aqui. E não, não se trata apenas duma horripilante semelhança discursiva a diferentes tradições fascistas. Trata-se, principalmente, dum retorno àquela pior forma de “excepcionalismo” americano – do qual, na verdade, nenhum Presidente americano (incluindo o próprio Barack Obama) se afastou plenamente até agora.

O ponto importante, aqui, é observar a escolha dos termos usados por Trump: “determinaremos os rumos da América e do mundo por muito tempo” é afirmar que agora emerge um “povo” que, sozinho, delimitará/fixará/definirá/estabelecerá/precisará o futuro de todo o planeta. E não era exatamente essa a visão de “Reich” dos nazistas?… Se esse Império emerge a partir de agora, então Trump, como o “primeiro dos cidadãos”, seria o Imperador não apenas do mundo inteiro, mas também seria o senhor do próprio tempo.

Especialmente para os ouvintes cristãos devotos – mas também judeus ou muçulmanos – aquela pequena frase deveria causar um intenso desconforto. Ali estava um Presidente prometendo que determinará, junto com seu “povo”, os destinos da Terra por muito tempo a partir de agora.

“A cerimônia de hoje, entretanto, tem um significado muito especial. Pois hoje não estamos meramente transferindo poder de uma administração a outra, ou de um partido a outro – estamos transferindo poder de Washington e devolvendo-o a vocês, o povo americano.

Por muito tempo, um pequeno grupo na capital de nossa nação tem colhido as recompensas do governo enquanto o povo tem arcado com os custos. Washington floresceu – mas o povo não partilhou de sua riqueza. Os políticos prosperaram – mas os empregos se foram e as fábricas fecharam.

Os poderosos se protegeram, mas não aos cidadãos de nosso país. As vitórias deles não foram suas vitórias; os triunfos deles não foram seus triunfos; e enquanto celebravam na capital de nossa nação, havia pouco a ser celebrado pelas famílias em dificuldade ao redor do país.

Tudo isso mudará – começando aqui mesmo e agora mesmo, pois este momento é o seu momento: ele pertence a você.”

Você consegue perceber o teor populista do trecho? O populismo poderia ser definido justamente como essa retórica política baseada na vilificação moral das elites e na veneração do povo comum para proveito do político populista. Só que, obviamente, essa retórica se esconde do espelho – já que, do contrário, o espelho refletiria a imagem daquele político como parte da elite que ele mesmo condena.

De fato, Trump não era, até agora, um “político” profissional. Mas ele também é membro da casta que “colheu das recompensas do governo”. Em 2013, por exemplo, recebeu um desconto de 40 milhões de dólares de impostos em um de seus investimentos – um imóvel em Washington, D.C. (de acordo com um relatório sobre descontos de impostos, assinado pelo Senador James Lankford [republicano], de 2015). Logo após o 11 de setembro de 2001, foi formado um fundo de apoio a microempresas da vizinhança do World Trade Center, e quem recebeu dinheiro naquela época, de acordo com uma auditoria federal de 2006? Sim, a não microempresa de Donald Trump recebeu 150 mil dólares de apoio federal!!!

Sim, o mesmo bilionário que sempre desfrutou de subsídios do governo federal e de governos estaduais e municipais para benefício de seus investimentos imobiliários – incluindo os 40 anos de abatimento de impostos pela reforma do antigo Hotel Commodore, em Nova York, em 1980, e, mais tarde, os quase 200 milhões de dólares para construir uma ligação entre uma rodovia e um outro de seus hotéis – agora ousa acusar outros por terem colhido “das recompensas do governo”. Ele se apresenta como a solução e cura, mesmo quando qualquer pessoa mediocremente informada sabe sobre alguns dos benefícios que tem recebido desde 1980.

O seu pronunciamento é, então, um ícone da pior forma de populismo possível!

Deste dia em diante, será a América primeiro.

Todos já conhecem minha repulsa à expressão “America First” (=a América [EUA] Primeiro), que encapsula em si uma horripilante história imoral de violência. Esse foi o slogan do “America First Committee” que se tornou uma organização de apoio ao Nazismo, disfarçada de movimento pela paz. Sua “paz”, com a liderança de Charles Lindbergh, era evitar que os E.U.A. declarasse guerra à Alemanha, durante a 2ª Guerra, impedindo que os nazistas exterminassem as populações judaicas.

Com Trump, esse eco pavoroso do passado ganha um novo sentido e uma outra dimensão. Os “pobres” (no jargão político americano, os derrotados no domínio da virtude empreendedora), os muçulmanos, os imigrantes e os países que recebem algum tipo de ajuda dos E.U.A. passam a encarnar um obstáculo à suposta grandeza americana.

O Império, ou melhor, o “Reich” passa a não ter mais nenhuma responsabilidade para com os dominados. A raça superior vence as inferiores na corrida pelo domínio de 1000 anos, e como estão em disputa, os superiores não precisariam se importar com os seus dominados! Parece ser uma materialização da websérie de história contrafactual “The Man in the High Castle” – a diferença é que ali é a realidade sendo fantasiada; já aqui, a fantasia é que é realizada!

Tantas coisas são feias e trágicas nessa história toda. Uma das piores é o fato de brasileiros historicamente iletrados aplaudirem aquele pronunciamento, e o personagem que o emitiu, porque o que disse se assemelha aos preconceitos que eles mesmos abraçam. Talvez não tenham compreendido que aquela foi uma mensagem para os “parasitas” da América – e que eles se encaixam nessa descrição!

+Gibson

Toxicity: o álbum explosivo e inesquecível

Gibson da Costa

 Il n'y a qu'un problème philosophique vraiment sérieux: c'est le suicide.

[Há apenas um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.]

(Albert Camus)
 

Era setembro de 2001. Enquanto os Estados Unidos eram sacudidos pelos atentados de 11 de setembro, o novo álbum da banda System of A Down (ou “SOAD”, para os íntimos), “Toxicity” – lançado no dia 4 daquele mês – estremecia os ouvidos do público americano. A música hereticamente surrealista e tóxica duma banda de “hard rock” criou o primeiro grande reboliço político contra artistas após o 11 de setembro. A vertiginosa “Chop Suey!” foi incluída numa lista de canções inapropriadas para serem tocadas nas rádios após os ataques terroristas e outras canções foram criticadas por seu conteúdo “questionável”. E o álbum se tornou o número 1 nas listas dos mais ouvidos e comprados naquela semana de setembro.

Considero os três maiores sucessos do álbum – Chop Suey!, Toxicity e Aerials – como as grandes pérolas do rock da primeira década do século XXI. As melodias, as poesias e as vozes se juntam para formar três grandes hinos políticos dos últimos tempos – e “hinos políticos” por conta não apenas de sua beleza desordeira, mas também por causa do contexto histórico no qual se tornaram sucesso massificado. Um sucesso, aliás, construído pela união da criação artística à retórica política, moldado por uma campanha de marketing articulada pela MTV – que mesmo após a campanha contra a transmissão da canção pelas rádios, repetidamente exibia o vídeo na emissora. O banimento da canção acabou sendo vencido por seu próprio absurdo no mundo da cultura de massa, e o álbum, atacado por políticos, religiosos e amantes das chamadas “teorias da conspiração”, se tornou um ícone do rock do início deste século.

 

Em “Chop Suey!”, ouvimos o trecho-problema:

[…] I don't think you trust
 In my self-righteous suicide
 I, cry, when angels deserve to die

[…]

Father into your hands, I commend my spirit
 Father into your hands
 why have you forsaken me
 In your eyes forsaken me
 In your thoughts forsaken me
 In your heart forsaken me […]

(Não acho que você confie
em meu suicídio hipócrita,
eu choro quando anjos merecem morrer

[…]

Pai, em suas mãos, entrego meu espírito
Pai, em suas mãos
Por que você me abandonou?
Em seus olhos, me abandonou
Em seus pensamentos, me abandonou
Em seu coração, me abandonou…)

E essas palavras bastaram para o início da caça às bruxas (ou seria “aos bruxos”?) contra o SOAD. Estariam eles incentivando ataques suicida contra os E.U.A.?

 

Nenhuma resposta poderia ser mais provocadora do que a dada pelo próprio Serj Tankian, coautor da canção e vocalista da banda, logo após os ataques de 11 de setembro:

"Os ataques/bombardeios brutais desta semana, em Nova York e Washington, juntamente com ameaças de ataques lá e em outras partes do país mudaram nossa época para sempre. Enquanto a mídia de massa se concentra nos detalhes da destruição e nas palavras encobertas dos políticos, tentarei entender e explicar os eventos a partir da cerca. BOMBARDEAR E SER BOMBARDEADO SÃO AS MESMAS COISAS NOS DIFERENTES LADOS DA CERCA.
 
 O terror não é uma ação humana espontânea sem crédito. As pessoas simplesmente não sequestram aviões e cometem harikari (suicídio) sem pensar antes de agir. Ninguém na mídia parece se perguntar POR QUE ESSAS PESSOAS FIZERAM ESSE TERRÍVEL ATO DE VIOLÊNCIA E DESTRUIÇÃO? […]"

Disponível em: <http://www.blabbermouth.net/news/archive-news-sep-14-2001-2/>. Acesso: 20 jan. 2017.

[Tradução livre nossa]

E o autor continua, oferecendo sua explicação e suas sugestões para a solução do problema do “harikari”. Sua receita antiviolência se assemelhando àquela oferecida pelas grandes tradições religiosas: a segurança e a sobrevivência só seriam alcançadas através da paz! A receita, embalada por um som pesado, intrigas políticas e uma massiva campanha de marketing pode levantar uma questão sobre a arte engajada do mundo do livre mercado: o rock, agora parte da cultura pop, ainda funciona como manifesto político (mesmo quando se vende como simples mercadoria comercializável)?

As outras pérolas do álbum:

 

 
 

Donald Trump: O discurso maniqueísta quase-fascista venceu, mas não pelo voto popular

Gibson Da Costa

O derrotado pelo voto popular, mas vencedor no Colégio Eleitoral, assume a Presidência dos Estados Unidos da América hoje. Mas será mesmo que o seu discurso salvacionista-maniqueísta – sua retórica [quase-]fascista – reflete os anseios da maioria esmagadora dos eleitores americanos?

Hillary Clinton venceu Donald Trump em quase 2.9 milhões dos votos populares – isto é, os votos dados por eleitores comuns. Trump venceu as eleições porque conseguiu um número maior de eleitores no Colégio Eleitoral. Ou seja, o sistema eleitoral maluco que ele mesmo tanto criticou durante a campanha foi o único responsável por sua vitória – mesmo considerando a alta porcentagem dos votos populares que obteve. (Ele, a propósito, não foi o primeiro a perder o voto popular, mas vencer no Colégio Eleitoral.) Se o sistema eleitoral americano fosse como o brasileiro, consistindo na contagem dos votos diretos para Presidente dados pelos próprios eleitores (1 eleitor = 1 voto), ele não teria ganho desta vez!

O ponto importante é que seu discurso salvacionista-maniqueísta, sua retórica [quase-]fascista, não foi comprada pela maioria esmagadora dos eleitores americanos – como alguns pensam. Para que você tenha uma ideia, eis a porcentagem dos votos populares recebidos pelos principais candidatos a Presidente dos E.U.A. em 2016:

Hillary Clinton (Partido Democrata) → 48,2% (65.844.954 votos)

Donald Trump (Partido Republicano) → 46,1% (62.979.879 votos)

Gary Johnson (Partido Libertário) → 3,3%

Jill Stein (Partido Verde) → 1%

O resto dos votos se distribuíram entre outros candidatos minoritários. (Esses dados, a propósito, estão atualizados até 22/12/2016.)

Filosofia para as vítimas da antifilosofia

Gibson da Costa

A vida etérea das “redes sociais” é a vida do marketing pessoal. Estamos todos numa vitrine na qual nos vendemos por meio das aparências. É a vida das edições de imagens, que impulsionam a [auto]massagem do ego na disputa pelos “likes” da “Rede Social” de todas as redes sociais. É a vida das imagens com citações descontextualizadas e, muitas vezes, apócrifas. Agora, a disputa e o conflito giram em torno de outra forma de poder: o poder da imagem autoconstruída dum “eu-mercadoria”, projetado, desenhado, manipulado, escrito pelo gosto e preferências alheias.

A coisa triste dessa baratização da humanidade digitalizada é que facilmente nos tornamos vítimas de falsos “filósofos”. E a “Rede Social” está repleta desses. Eles oferecem uma autoajuda barata que se vende como “filosófica”; uma autoajuda que oferece a “cura” para o deficit de “leitura” de nossa cultura: criam inimigos e heróis – os inimigos, claro, são todos aqueles de quem discordam e que deles discordam; os heróis são eles próprios, cercados por acólitos que repetem os refrões bélicos típicos de fanáticos!

E eu que sempre pensara que a criticidade fosse a base da filosofia! O julgar pela aparência, em minha compreensão, se afasta muito de qualquer noção filosófica de criticidade. Ou, como bem escreveu Roger Scruton (autor com quem nem sempre concordo): “os seres racionais não somente olham para as coisas, eles olham dentro das coisas”. Assim, qualquer “filósofo” que se venda como fonte de verdade única, enquanto condena todo e qualquer autor como se fosse mentiroso e, por isso, inferior a si, pratica qualquer coisa, menos filosofia!

A filosofia é inseparável do pensamento crítico, e este – de acordo com Hannah Arendt – faz com que tornemos “o outro” presente por meio da imaginação. Essa criticidade (ou “esclarecimento”) nos faria conhecer e considerar os pontos de vista de outras pessoas. E, assim, poderíamos analisar um objeto por todos os lados, a partir de diferentes perspectivas.

Proclamar anátemas não é filosofar; é, antes, dogmatizar. E a dogmatização é um instrumento utilíssimo para o marketing pessoal daqueles que se vendem como “gurus” da “filosofia” das redes sociais. Como o que proclamam é “a verdade”, e todos os outros são mentirosos, seus discípulos os veem como “autoridade” intelectual, moral, espiritual etc. Assim, uma nova geração de fanáticos é criada. O questionamento e o filosofar são assaltados. Defensores da violência, da tortura, do autoritarismo e da hierarquia são exaltados como baluartes da “esperança” – uma esperança vazia que já decepcionou inúmeros no passado e não falhará em decepcionar os acólitos desses falsos “filósofos” do presente.

 Carvalho prometeu mergulhar numa banheira de palavrões caso seu personal chanceler Ernesto Araújo rompa relações com a FrançaExemplo mais famoso entre os brasileiros de “filósofo” da antifilosofia

Você não tem de acreditar em nada do que escrevo. Não quero nem preciso de seguidores. Apenas convido você, que lê essas palavras, a olhar para “dentro das coisas”, a analisar qualquer coisa a partir de diferentes perspectivas. Em outras palavras, convido você a filosofar!

Referências

 

ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

 

SCRUTON, Roger. Bebo, logo existo: guia de um filósofo para o vinho. Tradução Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011.

Eleições presidenciais dos E.U.A. de 2016: voto no exterior, partidos e candidatos

Gibson da Costa

Em 2011, o Departamento de Estado dos Estados Unidos estimava a população de cidadãos americanos residentes no Brasil em cerca de setenta (70) mil – nesse número estão incluídos também aqueles que possuam a cidadania brasileira (seja por terem originalmente nascido no Brasil, por serem filhos de brasileiros ou por terem passado por processo de naturalização no país) [1]. Esse número, obviamente, não é exato e não reflete o número de eleitores americanos no Brasil – isto é, de cidadãos americanos registrados como eleitores, residentes em território brasileiro –, mas, ainda assim, poderia servir de razão suficiente para que brasileiros se interessassem em saber como funciona o sistema eleitoral americano.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, votar não é uma obrigação da cidadania americana – é, antes, um “privilégio”. Por isso, nem todos os cidadãos participam das eleições; nas eleições presidenciais de 2012, por exemplo, o número de cidadãos que votaram, comparado à população em idade eleitoral, foi de apenas 57,5%, de acordo com o relatório do Bipartisan Policy Center para as eleições daquele ano. De acordo com o mesmo relatório, o Estado de Utah, por exemplo, teve a participação de apenas 12,5% dos cidadãos em idade eleitoral [2].

Cidadãos americanos podem votar de qualquer lugar do mundo. Esse voto, contudo, não ocorre em consulados americanos, já que – diferentemente do Brasil – é proibido votar em dependências diplomáticas americanas no exterior. O voto é realizado, geralmente, pelos correios, através do envio de uma ficha eleitoral oficial que foi previamente enviada ao eleitor pelo Estado no qual o mesmo está registrado – mas também há outras formas de registro de votos vindos do exterior, a depender do Estado em questão. Isso pode fazer com que, em alguns Estados, a apuração dos votos leve dias para ser oficialmente concluída, já que devem esperar a contagem dos votos dos cidadãos no exterior (ou em outros Estados americanos). É um sistema extremamente complexo e fragmentado, quando comparado ao brasileiro!

Diferentemente do caso de brasileiros no exterior, é possível participar mesmo de eleições estaduais e/ou municipais, além das federais, estando no exterior ou em um Estado diferente do Estado de domicílio oficial. Como as leis eleitorais são estaduais, as regras mudam a depender do Estado onde o eleitor esteja originalmente registrado (isto é, do Estado no qual o eleitor tenha, de direito, “domicílio”). O Estado de domicílio, para os cidadãos que não residem mais nos E.U.A. (mesmo que nunca mais voltem ao país), é o último Estado de residência antes de deixar o território americano – são as leis desse Estado que determinam as regras às quais o eleitor deve se submeter.


Dos candidatos de 2016

Um equívoco comum fora dos Estados Unidos é pensar que haja apenas dois partidos políticos no país e, consequentemente, apenas dois candidatos à Presidência da União. A factualidade é bem diferente disso.

Há, literalmente, algumas centenas de partidos políticos nos E.U.A. A razão é simplesmente porque, diferentemente do Brasil, é possível haver partidos registrados apenas num município ou num Estado. Atualmente, há 36 partidos cujos filiados ocupam posições eletivas em algum nível (municipal, estadual ou federal). Desses, 8 possuem filiados nos executivos e legislativos estaduais: Partido Republicano, Partido Democrata, Partido Progressista [do Estado] de Vermont, Partido Libertário, Partido das Famílias Trabalhadoras, Partido Conservador do Estado de Nova York, Partido da Independência de Nova York, e os Independentes (que são políticos que concorrem sem estar filiados a um partido, mas que, são contados como um bloco quase-partidário). Os maiores partidos americanos, isto é, partidos que estão presentes em quase todos os Estados da União, são: Partido Republicano, Partido Democrata, Partido Libertário e Partido Verde. E os candidatos desses partidos são os nomes que possuiriam, em tese, alguma chance de serem escolhidos como Presidente dos Estados Unidos – já que seus nomes aparecem nas listas de votação de quase todos os Estados (os republicanos, democratas e libertários estão em todos os 50 Estados e no Distrito de Colúmbia; o Partido Verde é que não alcança todos os Estados).

Você, leitor, obviamente já conhece dois desses candidatos (e eu me esforçarei para guardar minhas opiniões sobre eles para mim mesmo!): Donald Trump, o candidato do Partido Republicano; e Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata. Esses são os candidatos que possuem mais recursos financeiros para gastarem os milhões e milhões de dólares que precisam para se promoverem. É por essa razão que todos os presidentes eleitos desde meados do século XIX sempre pertenceram a uma dessas duas agremiações. Candidatos de outras agremiações são chamados de “candidato de terceiro partido”. E a última vez em que um candidato de terceiro partido a Presidente conseguiu votação significativa foi em 1968, quando Ross Perot, um Independente (ou seja, não filiado a nenhum partido) alcançou 5% dos votos.

Os dois outros candidatos majoritários são Gary Johnson, do Partido Libertário, e Jill Stein, do Partido Verde. Além deles, outros candidatos presentes nas listas de votação de vários Estados são: Darrell Castle (Partido da Constituição), Evan McMullin (Independente), Gloria LaRiva (Partido do Socialismo e Libertação), Rocky de la Fuente (Partido da Reforma), Emidio Soltysik (Partido Socialista), Alyson Kennedy (Partido Socialista dos Trabalhadores), e mais cerca de 550 candidatos que ainda não abandonaram a disputa!

Então, como se vê, a redução das eleições àqueles dois candidatos que aparecem nos telejornais diários, ao redor do mundo, é um desserviço à democracia eleitoral americana, e contribui para o desconhecimento que a maioria das pessoas ao redor do mundo tem sobre a política interna dos Estados Unidos.

[1] Brazil-U.S. Bilateral Relations Fact Sheet. US Department of State. Disponível em: <https://www.state.gov/outofdate/bgn/brazil/191355.htm>. Acesso em: 11 out. 2016.

[2] Bipartisan Policy Center. 2012 Voter Turnout Full Report. Disponível em: <http://cdn.bipartisanpolicy.org/wp-content/uploads/sites/default/files/2012%20Voter%20Turnout%20Full%20Report.pdf>. Acesso em: 11 out. 2016.

Uma breve resposta a críticas desinformadas sobre o Construtivismo

Como resposta a uma manifestação minha sobre as afirmações dum vlogger/autor brasileiro (guru duma nova geração autoproclamada “conservadora”), um colega me enviou a ligação para um vídeo no qual o mesmo autor discorre – em sua “civilizada” maneira! – sobre aquilo que ele chama de “método sócio-construtivista”, ou o que o resto de nós chama de “construtivismo”.

Abaixo, responderei, brevemente, a algumas das perspectivas expostas no vídeo – deixando de lado, por ter mais o que fazer da vida, as recorrentes grosserias do nobre filósofo para com seu público.

1. “Método sócio-construtivista”

O construtivismo, em si, não é um método de ensino, é um conjunto de teorias epistemológicas. Sobre essas – ou uma ou algumas dessas – múltiplas teorias podem-se construir diferentes métodos de ensino; assim, não há “o método construtivista de ensino”.

2. “Para o método construtivista de ensino só existe [sic] dois elementos em jogo: um é o aluno e o outro é o mundo, que é o objeto.”

A propósito, para alguém que ataca a “incorreção” gramatical alheia como uma forma de “burrice”, é interessante como Carvalho consegue cometer um erro de concordância verbal tão simples: ele, talvez, não saiba que o verbo “existir” deve concordar em número com seu complemento, assim “só existem dois elementos”! Mas, como não partilho da visão linguística do nobre filósofo e, assim, não penso que as pessoas que violam a “gramática” normativa sejam intelectualmente deficientes – se o fizesse, tanto ele quanto eu seríamos intelectualmente deficientes –, analisemos sua afirmação:

Não, para construtivistas não há apenas “dois elementos em jogo” no processo de aprendizagem. Para compreender isso, temos de nos lembrar de onde saem as ideias construtivistas. Temos de revisar um pouco da história da filosofia.

Pensemos sobre as questões epistemológicas da modernidade – isto é, questões que lidam com a origem do conhecimento. No chamado Ocidente, temos lidado, na modernidade, com três grandes tradições que buscam oferecer uma explicação filosófica para o ser e o fazer do conhecimento, e, consequentemente, para como aprendemos: A) a tradição racionalista moderna, iniciada por René Descartes; B) a tradição empirista, iniciada por John Locke; e, C) a via media da tradição interacionista de Immanuel Kant.

Explicando cada uma dessas grandes tradições de forma muito breve – e, portanto, deficiente –, poderíamos resumi-las da seguinte forma:

a) A tradição racionalista moderna → o racionalismo moderno emergiu como uma versão atualizada do idealismo platônico. Para a tradição platônica, já trazíamos, desde antes do nascimento, as ideias das coisas, que nossas almas já conheciam desde sua vinda do mundo das ideias verdadeiras/perfeitas. Em sua versão moderna, as ideias são compreendidas de forma mais ampla, mas, ainda assim, como algo que trazemos ao mundo – ou seja, como algo inato. Diferentemente do idealismo platônico, o racionalismo moderno se baseia no raciocínio a partir da natureza desenvolvida na modernidade. Em seu cerne, encontra-se a visão de que as únicas fontes de conhecimento sejam, exatamente, a razão e o pensamento.

b) A tradição empirista → opostamente ao racionalismo, o empirismo compreende o conhecimento como algo que se obtém a partir do mundo externo, por meio dos sentidos, da experiência. Assim, para os empiristas, nasceríamos com uma mente sem conteúdos – uma tábula rasa. O conhecimento seria obtido apenas através da experiência com o meio e com os estímulos externos – ou seja, o conhecimento viria do objeto, de forma passiva, para o indivíduo; o objeto externo é, assim, a única fonte de conhecimento.

c) A tradição interacionista → Immanuel Kant, em sua monumental “Crítica da razão pura”, ofereceu uma solução para os reducionismos tanto do racionalismo quanto do empirismo. Para Kant, tanto o sujeito quanto o objeto externo desempenhariam um papel na formação do conhecimento. Através da intuição recebemos as impressões dos objetos externos; e, através do entendimento, articulamos essas impressões, aplicando os conceitos que dão forma a esses objetos. Em outras palavras, o conhecimento seria formado através da interação entre o pensamento humano e a experiência sensorial. [Obviamente, a teoria do conhecimento desenvolvida por Kant é muito mais complexa do que essa simplificação, mas não é minha intenção aqui discuti-la – apesar de sua fundamentalidade para o construtivismo.]

Essa teoria epistemológica de Kant é a base filosófica para o construtivismo, originalmente, a chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget. Piaget desenvolveu sua epistemologia genética influenciado pela epistemologia de Kant, mas é importante ter o cuidado de não sinonimizá-las – elas não são, necessariamente, a mesma coisa. Obviamente, o construtivismo, enquanto conjunto de teorias, recebeu contribuições importantes de outros pensadores além de Kant e Piaget, como Vygotsky, Luria e Wallon, por exemplo.

Mas, voltando à afirmação de Carvalho, na abordagem construtivista, aqueles dois elementos, tanto na formação do conhecimento quanto no processo de ensino-aprendizagem escolar, são insuficientes em si mesmos. É necessária a interação entre os dois; e, na escola, essa interação ocorre por meio da facilitação oferecida pelo professor.

3. “… e, no fim, chegará a obter toda uma concepção organizada do mundo a partir da [sic] mero experimento espontâneo. […] Agora, toda esta escola que foi adotada no Brasil, há cinquenta anos, e vê esses filhos das p***** desse Jean Piaget, Emilia Ferreiro, Vygotsky, Paulo Freire… todo esse bando de charlatão e vigarista [sic], p****!… O ensino é assim: o ensino não pode ser diretivo…”

Esse é o tipo de afirmação feito por quem não conhece as teorias que servem de base para o construtivismo. Os diferentes métodos construtivistas não são espontaneístas ou não-diretivistas, como assevera Carvalho. Piaget, por exemplo, ensinava que a aprendizagem é “provocada” pelo professor. Para Vygotsky, o professor é o “mediador” da aprendizagem. Para Wallon, é através da “intervenção” planejada e informada do professor que ocorre a aprendizagem na escola. Todos eles desmentem a afirmação do candidato a filósofo da educação acima sobre qual seria a perspectiva teórica construtivista.

4. “… é pra isto que existe a figura do mediador, do professor… sem o qual o aprendizado é impossível, impossível.”

Nesse ponto, posso concordar com o filósofo. Toda aprendizagem é sempre mediada. Para o construtivismo, na escola, essa figura de mediador é assumida pelo professor. Obviamente, o professor não é o único mediador no processo de aprendizagem duma criança, dum jovem ou dum adulto; ele o é no meio escolar.

É importante, aliás, conceituar a própria mediação, para evitarmos maiores incompreensões. O termo refere-se ao elo (leia-se “ponte”, “ligação”) entre o sujeito e seu objeto de aprendizagem – ou seja, é um processo de facilitação da construção do conhecimento por um personagem extra nessa interação entre o sujeito e o objeto. Isso é parte essencial das teorias construtivistas, e só alguém que não conheça as obras dos autores-chave dessa tradição poderia afirmar o contrário.

5. “Eu hoje mesmo tava [sic] lendo, a primeira página da Folha de São Paulo, você tem uns vinte erro [sic] de gramática na primeira página dum jornal, p****! Isso quer dizer que os profissionais de idioma não sabem mais o idioma… E as pessoas assim, elas não conseguem raciocinar…”

E isso foi, na verdade, para fechar com chave de ouro! Nem falarei sobre as perspectivas linguísticas abraçadas pelo pensador acima. Não preciso, agora, comentar mais nada dito nesse vídeo. Só me resta dizer que quando falamos, sem limites de bom senso, sobre tudo – mesmo aquilo que não conhecemos –, corremos o risco de, além de nos contradizermos, nos ridicularizarmos! Essa é uma lição que mesmo os grandes “filósofos” deveriam aprender!

Gibson Da Costa

Uma brevíssima explicação acerca da “shari’a”

 

 
Gibson da Costa
 


Fico sempre muito irritado quando ouço ou leio alguns comentários acerca da chamada “shari’a”. A maioria das pessoas, seguindo a retórica dos agentes da imprensa, refere-se à “lei islâmica” como se ela fosse uma “entidade” única e/ou como se fosse uma grande aberração.

…Eles não poderiam estar mais errados!

O Islã, como o Judaísmo e o Cristianismo, tem um código legal religioso. Enquanto o código legal judaico ortodoxo é chamado de “halakhah”, e o cristão é chamado de “direito canônico” (nas tradições católicas) ou “ordem eclesiástica / ordem da Igreja” (em muitas tradições protestantes), o código religioso da Ummah (a comunidade de fiéis muçulmanos) é chamado de “shari’a” (o Direito Islâmico). Nenhum deles, contudo, é estático ou uniforme. Como ocorre com as códigos civis, há espaço para muita diversidade interpretativa no que concerne a esses códigos.

O que importa, aqui, é que não há nada de absolutamente único ou estranho com o fato de haver um código legal religioso no Islã – com base no qual decisões são tomadas sobre a vida em comunidade, a aceitação ou exclusão de “(in)fiéis”, o status de certas pessoas, a aceitação ou não de certas crenças ou comportamentos etc. Isso pode não condizer muito com a mentalidade moderna ocidental, mas está presente em todas as comunidades de fé, em maior ou menor grau. Se você é parte de alguma comunidade de fé (igreja, centro, templo etc) que não possui um código legal explícito, se ela possui o status de Pessoa Jurídica, terá pelo menos um Estatuto Social (que mesmo sendo um documento civil, expõe expectativas que se baseiam nas perspectivas teológicas/religiosas daquela comunidade)!

Uma diferença que influencia na percepção que muitos cristãos ocidentais, especialmente não-católicos, têm da shari’a é o simples fato de o Cristianismo ocidental, de forma geral, enfatizar a “crença correta”, enquanto o Islã – assim como o Judaísmo –, de forma geral, enfatiza as “ações corretas”, o “comportamento correto” do fiel!

É importante tentar entender o próprio sentido do termo. “Shari’a”, em seu sentido não religioso, refere-se a um caminho que leva a um poço de água. Para as populações do deserto, um poço de água era/é a diferença entre a vida e a morte. Assim, aplicada à religião muçulmana, a “shari’a” seria um caminho que leva à vida – caminho esse divinamente revelado no texto sagrado (o Corão/Alcorão) e nas tradições orais atribuídas à Muhammad (que os muçulmanos acreditam ter sido Profeta). É nesse contexto que ela é a “Lei de Deus” – não muito diferente das ideias de “Lei de Deus” no Judaísmo ou no Cristianismo.

O Direito Islâmico não se baseia exclusivamente no Corão – como também ocorre com o Judaísmo/Cristianismo em relação à Bíblia. Isto é, em sentido amplo (no que concerne à teoria e à prática), há uma distinção entre a Lei de Deus (shari’a) – baseada naquilo que os muçulmanos creem ser revelações divinas – e a atividade humana de interpretar essa lei – chamada de “fiqh”. O Direito Islâmico é a combinação desses. De acordo com o fundador do Direito Islâmico, Muhammad ibn Idris al-Shafi’i (séc. VIII-IX d.C.), haveria quatro bases fundamentais para o Direito Islâmico: o Corão; a sunna de Muhammad; o consenso; e a analogia. Além dessas bases, sobre as quais concordam todas as escolas jurídicas islâmicas (madh’habs), há outras a depender da escola (madh’hab) em questão.

O termo “madh’hab” que citei acima, refere-se à cada uma das escolas jurídicas do Direito Islâmico. Essas escolas são tradições jurídicas que guiam a interpretação que um indivíduo ou grupo aceita em questões legais no Islã. Todo muçulmano adere a uma madhhab específica, independentemente do ramo islâmico do qual seja adepto.

No Islã sunita há, hoje, quatro madh’habs principais: a Hanafi; a Maliki; a Shafi’i (cujo nome vem de Muhammad ibn Idris al-Shafi’i, que citei acima); e a Hanbali (a escola que originou o ramo Salafi, que, por sua vez, influenciou a maioria dos movimentos jihadistas conhecidos – como a Irmandade Muçulmana, o Taliban, a al-Qa’ida, e o chamado Estado Islâmico). Todas elas possuem algumas subdivisões. Ademais, historicamente, possuem adeptos em regiões específicas do mundo – a depender de como o Islã se propagou por aquela região. Há muitas outras madh’habs, mas essas são seguidas por um número muito pequeno de adeptos que se encontram em regiões geográficas muito limitadas.

No Islã xiita, por sua vez, há um número ainda maior de madh’habs, mas as duas principais delas – ou seja, aquelas seguidas por um maior número de adeptos – são a Jaf’ari e a Batiniyyah, ambas com suas subdivisões.

Ou seja, se formos intelectualmente íntegros, nos recusaremos a comprar a retórica ignorante, islamofóbica, e nem um pouco inocente dos que atrelam a noção de “shari’a” ou “lei islâmica” ao terrorismo ou assassínio de “jihadistas radicais” – o próprio termo “jihadista” deve ser utilizado com cuidado, já que “jihad” não significa necessariamente “guerra física”; e ser um “jihadi” nem sempre se refere a fazer guerra física (o termo pode ser usado como uma metáfora duma “batalha espiritual” – noção muito comum a alguns cristãos hoje em dia, especialmente nas tradições pentecostais ou carismáticas). É bom lembrar, ademais, que no Islã não existe a expressão “guerra santa” – essa expressão é uma invenção “cristã”!

+Gibson

Uma breve nota sobre a questão da posse e porte de armas


Gibson Da Costa

Nunca tive muita paciência para com os “mentecaptos voluntários” – isto é, aqueles indivíduos que, mesmo podendo se informar, escolhem não o fazer, sejam quais forem suas razões. Quando se trata da discussão de temas “políticos” – como também de temas religiosos –, não faltarão “mentecaptos voluntários” advogando anátemas contra aqueles de quem discordam. Isso se evidencia ainda mais hoje, especialmente no pseudo-”conservadorismo” da moda que tomou as redes sociais digitais. [Os mentecaptos voluntários que se autoidentificam como “conservadores” parecem se ver como sinônimo da sofisticação intelectual – semelhantemente aos “esquerdistas” que tanto criticam, e que descrevem quase que como uma entidade única e abstrata… mas prefiro deixar meus comentários sarcásticos sobre isso para outra hora!]

Um desses “mentecaptos voluntários” brasileiros publicou comentários infelizes sobre o recente assassinato de dois profissionais da imprensa por seu antigo colega, e os tiroteios desta semana, ambos nos E.U.A., fazendo uma ligação entre a cobertura do caso e a discussão sobre o controle de armas para uso civil naquele país, e sinonimizando aquele contexto ao do Brasil. Seus leitores que também sejam voluntariamente mentecaptos devem ter concordado com sua teoria conspiratória… É uma pena! A retórica antidesarmamentista desses incoerentes pseudolibertários é uma piada de mau gosto, e um verdadeiro espetáculo de ignorância histórica! [Mas, calma! Ainda não estou advogando anátemas contra eles, só um pouco de sarcasmo!]

Filosófica, teológica e politicamente, sou contrário à ideia de qualquer poder externo ditar regras para minha vida pessoal. Não concordo com leis que controlem ou punam alguém por simplesmente externar um pensamento – por mais ofensivo que seja. Não concordo com leis que ditem regras para o comportamento privado dos cidadãos civilmente capazes, incluindo aquelas que ditam como pais devam criar ou educar seus filhos. Sou contrário ao uso e comércio de certos narcóticos e ao aborto, mas, ao menos parcialmente, penso que o que as pessoas fazem com seus corpos é problema seu – desde que eu, enquanto cidadão e pagador de impostos, não seja forçado a cobrir os custos por suas escolhas (na verdade, a discussão desses temas é muito mais complexa e não envolve apenas a questão do que as pessoas fazem a si mesmas, mas também deixarei esse tema para depois!). Apesar disso, acredito que a segurança do cidadão deva ser uma prerrogativa do Estado. Em meu ideário político, a propósito, a função básica do Estado – e “básica”, aqui, implica que ele pode ter mais funções – é justamente proteger e garantir a vida, a liberdade e o patrimônio do cidadão. [Esses três elementos são o que John Locke chamou de “propriedade”, que constituía um conceito muito mais amplo do que a “propriedade privada” proclamada por esses pseudolibertários brasileiros!]

Em se tratando do porte de armas no Brasil, o Estatuto do Desarmamento não “retirou um direito básico do cidadão” brasileiro. Portar armas nunca foi um direito básico do cidadão brasileiro. Desde 1603, pelo menos, havia leis que controlavam o porte de armas por “civis” aplicáveis à América portuguesa (as terras hoje integrantes da República Federativa do Brasil). As ordenações filipinas – conjunto onde se encontravam aquelas leis – estipulavam os detalhes sobre que tipos de armas podiam ser utilizadas por quem, quando, como, e onde. A legislação, obviamente, foi sendo alterada à medida da mudança de contextos.

Aqueles mentecaptos mais informados sobre a história do Direito nacional fazem, por sua vez, um tremendo esforço para justificar sua apologia ao porte de armas por civis através do apelo, na melhor das hipóteses equivocado, a tradições filosóficas e jurídicas estranhas ao contexto brasileiro. Sua base sempre será a tradição libertária americana, que defende uma noção de defesa congelada no contexto da América do Norte Britânica do século XVIII. Talvez eles devessem estudar mais as histórias da Inglaterra e dos Estados Unidos da América antes de publicarem e falarem as besteiras que espalham por aí!

Mas acho que, como um professor de História dos E.U.A. posso ajudá-los, um pouco, a se situarem. Vejamos…

A segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América – que os “filósofos políticos” “pró-armas” brasileiros, consciente ou inconscientemente, tomam como base para sua argumentação (já que seus argumentos são apenas uma caricatura daqueles dos “conservadores” americanos) –, de 1789, assevera o seguinte, num texto hoje estilisticamente confuso:

Uma milícia bem regulada, sendo necessária à segurança dum Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringido.

Desde o próprio século XVIII, essa Emenda tem sido interpretada de duas formas pelos tribunais, cidadãos e políticos americanos: alguns defendem que ela garanta ao cidadão comum o direito inalienável de portar armas (a interpretação que os “pró-armas” brasileiros abraçam); outros defendem que ela apenas garante a cada Estado o direito de manter sua própria “milícia”.

Obviamente, não vale a pena focar as nuanças políticas da discussão nos E.U.A., já que os “pró-armas” do Brasil não a compreenderiam de qualquer forma – não porque não tenham a capacidade intelectual para tal, mas porque sua disposição não é de construir uma compreensão da questão, mas sim a de opor-se ao que pensam ser uma “bandeira esquerdista” (o controle da posse e porte de armas).

Eles não compreendem que, historicamente, aquela minúscula Emenda carrega uma tradição milenar britânica – testificada já pelas coleções jurídicas de William Blackstone – de os cidadãos (homens) terem a obrigação de ser parte de “milícias” para a defesa do “Direito”. Sua obrigação incluía o dever de fornecerem armas. Isso, obviamente, numa época na qual não existiam forças de segurança (polícia, forças armadas etc) profissionais.

No caso específico dos Estados Unidos, após a Revolução, havia a necessidade de todos os homens participarem duma “milícia bem regulada”, e como essas milícias ainda não eram forças profissionais, e como os Estados membros da União não tinham os recursos necessários para a manutenção de tais forças, o direito de manter e portar armas foi garantido. Mas esse era um direito atrelado a uma obrigação: “a segurança dum Estado livre”.

Percebeu?!

Se analisássemos as razões apontadas pelos autores liberais clássicos ingleses e americanos para a existência do Estado – o que não farei aqui –, veríamos que sua existência é justificada pela necessidade da proteção daqueles três elementos da “propriedade” do cidadão apontados por John Locke (a vida, a liberdade e o patrimônio). [Lembre-se que quando Locke escrevia sobre “propriedade” não era exclusivamente a bens (patrimônio) que ele se referia, era a esses três elementos.] Pare eles, a proteção desses era uma prerrogativa do Estado. É dessa perspectiva que emerge o direito de manter e portar armas na Constituição dos Estados Unidos.

Por que esse direito não é abolido na Constituição americana? Por inúmeras razões. Uma delas sendo porque a tradição constitucional americana geralmente não abole direitos – e como o direito à manutenção e porte de armas é parte integrante da Carta de Direitos, sua abolição é mais complexa e complicada.

No caso do Brasil atual, entretanto, há instituições de Direito que têm a função de proteger a “propriedade” (no sentido lockeano) do cidadão. O fato de haver corrupção e ilegalidades nessas instituições não pode ser justificativa aceitável para que retiremos delas a função de proteção e a passemos a cidadãos miliciados. Ademais, a posse e porte de armas nunca foi um direito constitucional básico dos cidadãos brasileiros!

Então, caros brasileiros “pró-armas”, mudem seus argumentos!

+Gibson

O que significa chamar o professor de “facilitador”?

Gibson da Costa


Nossas escolhas metodológicas são, em minha opinião, uma escolha política. Assim, a forma como ensinamos, e a forma como nos relacionamos com os estudantes em sala (e fora dela), é uma expressão da forma como compreendemos tanto o ser humano quanto a sociedade – um reflexo de nosso imaginário antropológico e político. Isso faz com que eu sempre me preocupe quando vejo uma sala de aula organizada em fileiras direcionadas ao professor, com ele ocupando uma posição magistral diante de seus alunos: o que essa organização diria sobre o imaginário antropológico e político da escola e do professor?

Nossa sociedade, no século XXI, precisa de jovens que possam resolver problemas, tomar decisões, pensar criativamente, comunicar ideias de forma eficaz, e trabalhar eficientemente independentemente e em grupo. O tipo de professor que funciona como “transmissor” de conhecimento por meio de aulas exclusivamente expositivas, falando duma posição de autoridade exclusiva em sala de aula é insuficiente para preparar o tipo de jovens que nossa sociedade precisa.

No mundo cada vez mais complexo e fluido no qual vivemos, os jovens precisam de oportunidades para desenvolverem capacidades e habilidades pessoais, associadas aos conhecimentos e compreensões previstos nos programas curriculares, como parte de sua educação escolar. Para tal, o professor precisa desenvolver a habilidade de engajar seus alunos ativamente no processo de ensino-aprendizagem, tornando-o uma experiência mais relevante, apreciável e motivadora. Pessoalmente, essa é uma escolha metodológica que espelha minhas próprias compreensões sobre o ser humano e sobre a vida em comunidade – meu imaginário antropológico e político.

Esse processo de ensino-aprendizagem no qual os alunos participam mais ativamente tem implicações diretas para o papel desempenhado pelo professor em sala de aula. Há, aí, uma mudança daquele conhecido modelo centrado no professor para uma abordagem centrada no aluno. Há, também, uma mudança do ensino-aprendizagem centrado no produto para um ensino-aprendizagem centrado no processo.

Colocar o aluno na posição central no processo de ensino-aprendizagem não significa, diferentemente do que se poderia pensar, diminuir a importância do professor nesse processo. Como afirma Libâneo,

O professor é aqui um parceiro mais experiente na conquista do conhecimento, interagindo com a experiência do aluno. O papel do ensino – e, portanto, do professor – é mediar a relação de conhecimento que o aluno trava com os objetos de conhecimento e consigo mesmo, para a construção de sua aprendizagem. O papel do ensino é possibilitar que o aluno desenvolva suas próprias capacidades para que ele mesmo realize as tarefas de aprendizagem e chegue a um resultado.1


Poderíamos ilustrar essa mudança de abordagens por meio do uso de uma tabela. Do lado esquerdo, veremos aquilo que poderíamos chamar de abordagem magistral (porque centrada na autoridade exclusiva do professor) do processo de ensino-aprendizagem, e, do lado direito, aquilo que nomearemos abordagem democrática (porque centrada na participação comunitária de todos os envolvidos) do processo de ensino-aprendizagem – como a mudança de papel do professor implica, também, uma mudança de papel do aluno, dividirei a lista em duas partes:

PAPEL DO PROFESSOR

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Centrada no professor

Centrada no aluno

Centrada no produto

Centrada no processo

Professor é “transmissor do conhecimento”

Professor é “organizador do conhecimento”

Professor é o que faz, o que tem as respostas

Professor facilita a aprendizagem

Foco na matéria/componente curricular específico

Foco numa aprendizagem holística

PAPEL DO ALUNO

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Recipiente passivo do conhecimento

Aprendiz ativo e participativo

Centrada na resposta a perguntas

Centrada no questionamento

Receptor da “transmissão” do professor

Assume responsabilidade por sua própria aprendizagem

Compete com outros alunos

Colabora com outros para sua aprendizagem

Quer dominar a discussão, sempre tendo razão

Ativa e participativamente, ouve às opiniões dos outros

Aprendiz de matéria/componentes individuais

Conecta e inter-relaciona sua aprendizagem


Mas o que significa, afinal de contas, chamar o professor de
facilitador?

Num ambiente escolar onde se opta por uma abordagem democrática do processo de ensino-aprendizagem – isto é, uma abordagem que enfatiza uma participação ativa dos estudantes nesse processo –, o professor apoia seus alunos em seus esforços para aprenderem e desenvolverem habilidades tais como avaliar evidências, negociar, tomar decisões informadas, resolver problemas, trabalhar independentemente ou em grupo, etc. Para isso, a participação dos alunos em seu próprio aprendizado é essencial.

Algumas vezes, o professor-facilitador terá de assumir um papel ou uma função específica para melhorar a aprendizagem na sala de aula, ou para desafiar seus alunos para que pensem de forma diferente. Alguns desses papéis poderiam incluir:

  • facilitador (aparentemente) “neutro”: leva o grupo a explorar diferentes pontos de vista sem explicitar sua própria opinião (tendo-se em mente, obviamente, que absolutamente ninguém encontra-se numa posição de “neutralidade”);

  • advogado do diabo: o professor deliberadamente adota uma posição oposta para confrontar os alunos, independentemente de sua própria visão;

  • posições explícitas: o professor declara sua própria posição, para que o grupo, assim, conheça suas opiniões;

  • aliado: o professor apoia a visão de um subgrupo ou indivíduo (geralmente uma minoria);

  • posição oficial: o professor informa à turma a posição oficial sobre certos temas, por exemplo, a Constituição Federal, as leis, certas organizações etc – um exemplo: “nesta classe não aceitaremos insultos racistas, sexistas, homofóbicos, porque além de serem descorteses, violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal e as leis brasileiras”;

  • desafiador: o professor, através de questionamentos, desafia as opiniões sendo expressas pelos alunos e encoraja-os a justificarem suas posições;

  • provocador: o professor apresenta um argumento, ponto de vista ou informação que ele sabe provocará a turma, e nos quais ele não necessariamente acredita, mas por serem crenças autênticas de outros indivíduos ou grupos, ele os apresenta convincentemente;

  • ator: o professor torna-se uma pessoa ou personagem particular (por exemplo, um político, comunicador, ou líder religioso), apresentando à classe seus argumentos ou opiniões.


Os papeis listados acima apresentam suas vantagens e suas desvantagens, e é deveras importante considerá-las quando do planejamento de nossas aulas. Algumas perguntas sobre as quais poderíamos pensar incluem:

  • Como me sentirei se assumir este papel?

  • Posso pensar em áreas de minha prática atual nas quais alguns desses papeis poderiam ser desempenhados?

  • Já assumo alguns desses papeis inconscientemente?

  • Há alguma necessidade específica em minha turma que deva ser considerada?

  • Que estratégias posso usar para lidar com problemas difíceis e desafiadores que possam surgir?

  • Já decidi exatamente quais são os objetivos da aula?

  • Etc, etc, etc…


É importante lembrar-se, contudo, que para que nos tornemos facilitadores em sala de aula, devemos nos engajar num cuidadoso trabalho de planejamento. Em minha própria experiência, assumindo diferentes papeis em sala – de acordo com meus objetivos –, isso é ainda mais importante. É só por meio dum cuidadoso planejamento que podemos saber o que poderia ou não funcionar com nossas turmas, nossos objetivos, o tema que trataremos em sala etc; ajudando, assim, nossos alunos a assumirem eles mesmos um papel mais ativo em sua aprendizagem.

 

Referências

1LIBÂNEO, José Carlos. Didática: velhos e novos temas. [S/l]: Edição do Autor, 2002., p.5.