O que é História e qual sua relação com o passado?

Gibson da Costa

Conceituar “história” pode ser difícil por causa do próprio fato de a palavra possuir, pelo menos, dois sentidos básicos:

I) o termo se refere ao próprio passado, ou seja, à matéria sobre a qual os historiadores escrevem;

II) pode se referir ao estudo daquele passado, às práticas e escritos dos historiadores.

Poderíamos conceituar a História, brevemente, como aquilo que a variada comunidade especializada dos historiadores pratica (REIS, 2006, p.101). O que esses profissionais fazem é produzir conhecimento sobre o passado ou, individualmente, produzir contribuições ao conhecimento sobre o passado. Assim, um conceito mais elaborado do que seja a história poderia ser:

A História é o corpo de conhecimentos sobre a experiência humana no Tempo e no Espaço produzido pelos historiadores, juntamente com tudo o que está envolvido no processo de produção, comunicação e ensino sobre esse conhecimento.

Por que falar em “Tempo” e “Espaço” em vez de “passado”?

A relação entre “Tempo” e “Espaço” é inegável na experiência humana. Ambos são reciprocamente condicionados. Ou seja, nossas noções de “Tempo” são espacialmente (e materialmente) condicionadas e, semelhantemente, nossas noções de “Espaço” são temporalmente (e materialmente) condicionadas. Por isso, conceituar a História como o conhecimento sobre o “passado” humano seria limitado e insuficiente; assim, prefiro falar, aqui, na “experiência humana no Tempo e no Espaço”.

Se falássemos em “passado“, enfrentaríamos alguns obstáculos, como o de conceituar o que seria o “passado”, e, dependendo de como o conceituássemos, poderíamos nos perguntar ainda: será que os historiadores se dedicam a estudar apenas o “passado”?

Se você pesquisar na seção de História de qualquer grande livraria ou se pesquisar as publicações acadêmicas da área, perceberá que nós historiadores não pesquisamos e escrevemos apenas sobre aquilo que comumente chamamos de “passado” (um tempo relativamente distante que ficou para trás). Nós historiadores também tratamos de assuntos do nosso próprio tempo. Isso fica claro quando percebemos que uma das subáreas da História é chamada de “História do Tempo Presente”. Assim, temos de ter o cuidado com a noção de “passado” que utilizamos quando estudamos História.

Pessoalmente, compreendo o passado historiográfico como aquele que abrange o presente vivido/percebido pelo sujeito. A fronteira temporal entre os fenômenos da experiência humana e sua percepção pela mente podem ser tão tênues que não nos damos conta de que ocorreram no passado. Exatamente como o tempo despendido entre o momento no qual comecei a digitar este texto e aquele no qual o arquivo foi originalmente salvo. Assim, quando concluído, já era produto do passado.

Referência

REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Diálogos sobre a democracia

A sessão de instalação da Assembleia Constituinte levou uma multidão ao Congresso Nacional, no início de 1987

Agência Senado

Refletir sobre a democracia brasileira a partir da Constituição de 1988 é o cerne do recém-lançado Acervo Digital do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). A plataforma, que começou a ser pensada em 2019, foi desenvolvida graças a uma parceria com o Centro de Estudos Internacionais e de Política Contemporânea (Ceipoc) e o Centro de Memória, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além do apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, o banco de dados abriga duas coleções principais. “A aba denominada experiências de pesquisa contém entrevistas com pesquisadores sobre a democracia constitucional brasileira. Memória da Constituinte traz depoimentos de protagonistas e pesquisadores sobre o processo de transição democrática e a Assembleia Nacional Constituinte realizada entre 1987 e 1988”, explica Andrei Koerner, coordenador do projeto e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp). “Queremos gradativamente ampliar o número de coleções.”

A equipe é composta por 10 pesquisadores vinculados ao Cedec e quatro bolsistas de iniciação científica. Em 2020 o grupo começou a produzir a coleção Experiências de Pesquisa. “Além de falar sobre o processo de elaboração da Constituição, os relatos revelam a trajetória acadêmica dos entrevistados, os bastidores de suas investigações, voltadas ao cenário político brasileiro entre o final da década de 1980 e os dias de hoje, bem como de que forma a instabilidade política que se instaurou no país a partir de 2013 vem impactando seus trabalhos”, informa o historiador Ozias Paese Neves, integrante da equipe do Acervo Digital, que atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Arquivo Público do Estado de São PauloRegistro da entrega de emenda popular sobre direitos das crianças, em agosto de 1987Arquivo Público do Estado de São Paulo

Desde então a equipe ouviu sete pesquisadores, como o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro dos governos José Sarney (1985-1990) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). “A listagem da bibliografia que utilizamos para preparar as entrevistas e o conteúdo adicional disponibilizado pelos próprios entrevistados ficarão acessíveis para consulta no banco de dados”, diz outra integrante do projeto, a cientista política Celly Cook Inatomi, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu), também apoiado pela FAPESP e pelo CNPq. “Esse material poderá servir de fonte não apenas para outros pesquisadores, mas também para professores do ensino fundamental e médio utilizarem em sala de aula, por exemplo.”

Dentre as entrevistas disponíveis no momento está a transcrição do depoimento da historiadora e socióloga Débora Alves Maciel, do curso de ciências sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp). Há também um vídeo com o relato do cientista político André Singer, da FFLCH-USP. “Todas as transcrições serão acompanhadas do vídeo da entrevista e vamos disponibilizar trechos desse material audiovisual para serem compartilhados nas redes sociais”, conta Koerner.

Zuleika de Souza / Agil / Biblioteca NacionalNa tribuna do Congresso, Ailton Krenak fez a defesa de emenda sobre os direitos indígenas, perante a Comissão de Sistematização Zuleika de Souza / Agil / Biblioteca Nacional

A meta para este ano é recolher outros quatro depoimentos de pesquisadores radicados no Brasil. “Aprendemos muito ao preparar e realizar as entrevistas. Elas têm trazido elementos importantes para que os integrantes do projeto reflitam sobre questões contemporâneas como a crise da democracia. A ideia é que essas reflexões se desdobrem em artigos a respeito dessas temáticas”, relata o cientista político Lucas Baptista de Oliveira, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Caixeiro-viajante
“A sistemática de coleta dos depoimentos é lenta e laboriosa. Além disso, alguns entrevistados faleceram antes de concluir o ciclo, sem conferir o conteúdo e autorizar sua publicação, o que inviabiliza a veiculação da entrevista”, informa o economista e cientista político Antônio Sérgio Rocha, coordenador do projeto Memória da Constituinte, a outra coleção presente no banco de dados.

A origem de Memória da Constituinte está no projeto “Constituição: Teoria e prática”, que nasceu em 2008 no Cedec sob a coordenação de Cicero Araujo, da FFLCH-USP (ver Pesquisa FAPESP n° 274). Na época, Araujo reuniu um grupo de pesquisadores, entre eles Rocha. “Após ler exaustivamente sobre as Constituições brasileiras desde o século XIX, resolvemos entrevistar pessoas que vivenciaram o processo Constituinte de 1987-1988, como o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, autor do livro A Constituinte e a Constituição que teremos [Editora Revista dos Tribunais, 1985]”, recorda Rocha, professor da EFLCH-Unifesp, campus de Guarulhos.

Ao longo do tempo, a ideia inicial se desdobrou em outros projetos, sempre realizados pelo Cedec e, a partir de 2013, em conjunto com o curso de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). A parceria, que aconteceu por intermédio do advogado José Francisco Siqueira Neto, professor daquela instituição de ensino, resultou no Colóquio nacional percurso constitucional brasileiro (2013) e no Simpósio internacional processos Constituintes comparados (2014), ambos sediados na UPM. Entre 2016 e 2018, a iniciativa contou com o apoio da FAPESP.

Acervo Museu da RepúblicaAdesivo com desenho do cartunista Henfil (1944-1988) foi utilizado para estimular a participação da sociedade civil nos trabalhos da ConstituinteAcervo Museu da República

Ao todo foram realizadas 152 entrevistas. Há cerca de quatro anos, 22 desses depoimentos passaram a ser disponibilizados no site do Cedec. Agora o material está sendo transferido para o Acervo Digital – 17 entrevistas já foram indexadas e encontram-se disponíveis para consulta. “Esses depoimentos mostram que a trajetória até a Constituinte de 1988 foi longa e iniciada pela sociedade civil ainda durante a ditatura militar [1964-1985]. Em 1971, por exemplo, o MDB escreveu a Carta do Recife, documento em que o partido oposicionista pretendia pressionar o regime pela reconstitucionalização do país”, aponta Rocha.

Essa pauta também mobilizava figuras públicas como o jurista Dalmo Dallari (1931-2022), professor emérito da Faculdade de Direito da USP, que em 2008 declarou ao projeto: “Precisávamos de uma Constituinte para que no Brasil houvesse uma Constituição verdadeira, autêntica. Começaram a surgir, principalmente depois de 1979, alguns trabalhos, alguns artigos sobre o assunto. […] Isso veio pouco depois da Lei da Anistia. Já havia, embora com algum temor, a possibilidade de fazer publicações. E aí se lançou a ideia de uma Constituinte, que depois se divulgou e teve grande circulação, por vários meios. Eu próprio virei um caixeiro-viajante da Constituinte, circulava por muitos lugares do Brasil. Relembro uma dessas viagens. Eu tinha ido falar em Pirapora, norte de Minas Gerais, com alguns grupos organizados. E um fato me surpreendeu: eu estava falando de Constituinte quando me disseram: ‘Está aqui uma delegação de mulheres, do bairro Tiradentes, que quer lhe entregar um documento’. Eu as recebi. Elas tinham preparado propostas para a Constituinte” (ver Pesquisa FAPESP n° 315).

Acervo CEDI / CDO deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Assembléia Nacional Constituinte, exibe o primeiro exemplar da Constituição de 1988Acervo CEDI / CD

Segundo Rocha, além das entrevistas, o Acervo Digital contará com documentação extra, como a cronologia dos 613 dias do processo de elaboração do texto constitucional, as bancadas partidárias que participaram da votação do documento e vídeos. “Um deles traz o antológico discurso do ativista indígena Ailton Krenak no plenário da Assembleia Nacional Constituinte, que mudou a votação do capítulo sobre a demarcação das terras indígenas”, conta. O conteúdo de Memória da Constituinte, entretanto, não ficará circunscrito ao mundo virtual. No momento, o pesquisador organiza o material em formato de livro, que deve ser lançado em oito volumes. “A expectativa é de que três deles saiam no próximo semestre”, finaliza o professor da Unifesp.

Projetos
1. Implementação do Núcleo de Pesquisa em Ciências Sociais e Tecnologias Digitais (nº 19/06157-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Reserva Técnica para Infraestrutura Institucional de Pesquisa; Pesquisador responsável Andrei Koerner (Cedec); Investimento R$85.824,44.
2. A Constituinte recuperada. Vozes da transição, memória da redemocratização, 1983-1988 (nº 15/07080-5); Modalidade Auxílio à pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Antônio Sérgio Carvalho Rocha (Cedec); Investimento R$86.193,64.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.